domingo, 30 de novembro de 2008

A respeito do problema das Nacionalidades ou sobre a "Autonomia"


Acho que incorri numa grave culpa perante os operários da Rússia por não ter intervindo com energia e dureza no decantado problema da autonomia, que oficialmente se denomina, cuido, problema da união das repúblicas socialistas soviéticas.Neste verão, quando o problema surgiu, e estava doente, e mais tarde, no outono, confiei de mais na minha cura e em que os plenos de Outubro e Dezembro me dariam a oportunidade de intervir no problema. Mas não pude assistir ao Pleno de Outubro (dedicado a este problema) nem ao de Dezembro, pelo que não cheguei a tocá-lo quase em absoluto.Pude apenas conversar com o camarada Dzerzhinski, que tornou do Cáucaso e contou-me como se acha este problema na Geórgia. Também pude trocar um par de palavras com o camarada Zinoviev e exprimir-lhe os meus temores sobre o particular. O que me disse o camarada Dzerzhinski, que presidia a comissão enviada pelo Comitê Central para "investigar" o que di respeito ao incidente de Geórgia, não pude deixar-me mais que com temores acrescentados. Se as coisas se puseram de tão jeito que Ordzhonikidze pude chegar ao emprego da violência física, segundo me manifestou o camarada Dzerzhinski, podemos imaginar em que chapuceira temos caído. Pelos vistos, toda esta empresa da "autonomização" era falsa e intempestiva em absoluto.Diz-se que era necessária a unidade do aparato. Donde partiram tais afirmações? Não será desse mesmo aparato russo que, como indicava já num dos anteriores números do meu diário, tomamos do czarismo, tendo-nos limitado a untá-lo com óleo soviético?É indubitável que se deveria demorar a aplicação desta medida até podermos dizer que respondemos do nosso aparato como algo próprio. Mas agora, em consciência, devemos dizer o contrário, que nós chamamos nosso a um aparato que na verdade nos é ainda alheio por completo e constitui um misto burguês e czarista que não houve qualquer hipótese de ultrapassar em cinco anos, sem ajuda de outros países e nuns momentos em que predominavam as "ocupações" militares e a luta contra a fome.Nestas condições é muito natural que a "liberdade de separar-se da união", com que nós nos justificamos, seja um papel molhado incapaz de defender os não russos da invasão do russo genuíno, chauvinista, no fundo um homem miserável e dado à violência como é o típico burocrata russo. Não há qualquer dúvida de que a insignificante percentagem de operários soviéticos e sovietizados afundariam nesse mar de imundícia chauvinista russa como a mosca no leite.Em defesa desta medida diz-se que foram segregados os Comissariados do Povo que se relacionam diretamente com a psicologia das nacionalidades, com a instrução nas nacionalidades. Mas a respeito disto ocorre-nos uma pergunta, a de se é possível segregar estes Comissariados por completo, e uma segunda pergunta, a de se temos tomado medidas com a suficiente solicitude para protegermos realmente os não russos do esbirro genuinamente russo. Eu acho que não as tomamos, embora pudéssemos e devêssemos tê-lo feito.Eu acho que neste assunto exerceram uma influência fatal as pressas e os afã administrativos de Staline, bem como a sua aversão contra o decantado "social-nacionalismo". Via de regra, a aversão sempre exerce em política o pior papel.Temo igualmente que o camarada Dzerzhinski, que foi ao Cáucaso investigar o assunto dos "delitos" desses "social-nacionais", se tenha distinguido neste caso também só pelas suas tendências puramente russas (sabe-se que os não russos russificados sempre exageram quanto às suas tendências puramente russas), e que a imparcialidade de toda a sua comissão a caracterize suficientemente a "pancada" de Ordzhonikidze. Acho que nenhuma provocação, mesmo nenhuma ofensa, pode justificar esta pancada russa, e que o camarada Dzerzhinski é irremediavelmente culpável de ter reagido ante isso com ligeireza.Ordzhonikidze era uma autoridade para todos os demais cidadãos do Cáucaso. Ordzhonikidze não tinha direito a deixar-se levar pela irritação à que ele e Dzerdhinski se remetem. Ao contrário, Ordzhonikidze estava na obriga de se comportar com uma sobriedade que não se pode pedir a nenhum cidadão ordinário, tanto mais se este for acusado de um delito "político". E a realidade é que os sociais-nacionais eram cidadãos acusados de um delito político, e todo o ambiente em que se produziu esta acusação apenas assim podia qualificá-lo.Relativamente a este assunto, coloca-se já um importante problema de princípio: como compreender o internacionalismo.Nas minhas obras a respeito do problema nacional tenho já escrito que a formulação abstrata do problema do nacionalismo em geral não serve para nada. Cumpre distinguirmos entre o nacionalismo da nação da nação opressora do nacionalismo da nação oprimida, entre o nacionalismo da nação grande e o nacionalismo da nação pequena.No que di respeito ao segundo nacionalismo, nós, os integrantes de uma nação grande, quase sempre somos culpáveis no terreno prático histórico de infinitos atos de violência; e mesmo mais: sem dar-nos conta, cometemos infinito número de atos de violência e ofensas. Não tenho mais do que evocar as minhas lembranças de como nas regiões do Volga tratam respectivamente os não russos, de como a única maneira de chamar os polacos ex "poliáchishka", de que para burlar-se dos tártaros sempre os chamam "príncipes", o ucraniano chamam-no "jojol", e o georgiano e os demais naturais do Cáucaso chamam-nos "homens do Capciosa".Por isso, o internacionalismo por parte da nação opressora ou da chamada nação "grande (embora seja só grande pelas suas violências, só como o é um esbirro) não deve reduzir-se a observar a igualdade formal das nações quanto também a observar uma desigualdade que de parte da nação opressora, da nação grande, compense a desigualdade que praticamente se produz na vida. Quem não tenha compreendido isto, não tem compreendido a posição verdadeiramente proletária face ao problema nacional; no fundo, continua a manter o ponto de vista pequeno-burguês, e por isso não pode evitar escorregar a cada instante ao ponto de vista burguês.O quê é importante para o proletário? Para o proletário é não só importante, mas uma necessidade essencial, gozar, na luta proletária de classe, do máximo de confiança pela parte dos componentes de outras nacionalidade. O que foi falta para isso? Para isso cumpre mais algo do que a igualdade formal. Para isso, cumpre compensar de uma maneira ou de outra, com o seu trato ou com as suas concessões às outras nacionalidades, a desconfiança, o receio, as ofensas que no passado histórico lhes produziu o governo da nação dominante.Acho que não cumprem mais explicações nem entrarmos em mais pormenores tratando-se de bolcheviques, de comunistas, e creio que neste caso, no que atinge à nação georgiana, temos um exemplo típico de como é que a atitude verdadeiramente proletária exige da nossa parte extremada cautela, delicadeza e transigência. O georgiano que desdenha este aspecto do problema, que lança desdenhosamente acusações de "social-nacionalismo" (quando ele próprio é não apenas um "social-nacional", autêntico e verdadeiro, senão um basto esbirro russo), esse geórgico magoa, em essência, os interesses da solidariedade proletária de classe, porque nada demora tanto o desenvolvimento e a consolidação desta solidariedade como a injustiça no terreno nacional, e para nada som tão sensíveis os "ofendidos" componentes de uma nacionalidade como para o sentimento da igualdade e o desprezo dessa igualdade pela parte dos seus camaradas proletários, embora o façam por negligência, embora a cousa semelhe uma brincadeira. E isso, neste caso, é preferível exagerar quanto às concessões e a suavidade com as minorias nacionais, do que pecar por defeito. Por isso, neste caso, o interesse vital da solidariedade proletária e, portanto da luta proletária de classe, requer que jamais olhemos formalmente o problema nacional, senão que sempre levemos em conta a diferença obrigatória na atitude do proletário da nação oprimida (ou pequena) para a nação opressora (ou grande).Quê medidas prática se devem tomar nesta situação?Primeira, cumpre manter e fortalecer a união das repúblicas socialista; sobre isto não pode haver dúvida. Necessitamo-lo nós o mesmo que o necessita o proletariado comunista mundial para lutar contra a burguesia mundial e para defender-se das suas intrigas.Segunda, cumpre manter a união das repúblicas socialistas no que atinge ao aparato diplomático, que, dito seja de passagem, é uma exceção no conjunto do nosso aparato estatal. Não deixamos entrar nele nem uma só pessoa de certa influência procedente do velho aparato czarista. Todo ele, considerando os cargos de alguma importância, compõe de comunistas. Por isso, este aparato tem ganhado já (podemos dizê-lo rotundamente) o título de aparato comunista provado, limpo, em grau incomparavelmente maior, dos elementos do velho aparato czarista, burguês e pequeno burguês, a que nos vemos na obriga de recorrer em outros Comissariados do Povo.Terceira, cumpre punir exemplarmente o camarada Ordzhonikidze (digo isto com grande sentimento, porque somos amigos e trabalhei com ele no estrangeiro, na emigração) e também terminar de revisar ou revisar de novo todos os materiais da comissão de Dzerzhinski, com o fim de corrigir o cúmulo de erros e de juízos parcelares que indubitavelmente ali há. A responsabilidade política de toda esta campanha de verdadeiro nacionalismo russo deve fazer-se recair, é claro, sobre Staline e Dzerzhinski.Quarta, cumpre implantar as normas mais severas no atinente ao emprego do idioma nacional nas repúblicas de outras nacionalidades que são parte da nossa União, e comprovarmos o seu cumprimento com particular cuidado. Sem qualquer dúvida, com o pretexto de unidade do serviço do caminho-de-ferro, com o pretexto da unidade fiscal, etc., tal como agora é o nosso aparato, escorregará um grande número de abusos de caráter puramente russo. Para combatermos esses abusos, precisa-se de um especial espírito de inventiva, sem falarmos já da particular sinceridade de quem se encarregar de fazê-lo. Cumprirá um código detalhado, que apenas terá qualquer perfeição se redigido por pessoas da nacionalidade em questão e que morem na sua república. A respeito disto, de maneira nenhuma devemos afirmar-nos de antemão na idéia de que, como resultado de todo este trabalho, não haja que recuar no seguinte Congresso dos Sovietes, quer dizer, de que não cumpra manter a união das repúblicas soviéticas apenas no senso militar e diplomático, e em todos os restantes aspectos restabelecermos a autonomia completa dos distintos Comissariados do Povo.Deve ter-se presente que o fracionamento dos Comissariados do Povo e a falta de concordância do seu labor relativamente a Moscou e os outros centros, podem ser paralisados suficientemente pela autoridade do Partido, se esta for empregue com a necessária discrição e imparcialidade; o dano que o nosso Estado puder sofrer pela falta de aparatos nacionais unificados com o aparato russo é incalculavelmente, infinitamente menor do que o dano que representaria não só para nos, quanto para todo o movimento internacional, para os centos milhões de seres da Ásia, que deve avançar ao primeiro plano da história num próximo futuro, depois de nós. Seria um oportunismo imperdoável se na véspera dessas ações do Oriente, e ao princípio do seu despertar, quebrantássemos o nosso prestígio nele embora só fosse com a mais pequena aspereza e injustiça a respeito das nossas próprias nacionalidades não russas. Uma cousa é a necessidade de se agrupar contra os imperialistas de Ocidente, que defendem o mundo capitalista. Neste caso não pode haver dúvidas, e nem cumpre dizer que aprovo incondicionalmente estas medidas. Outra cousa é quando nós mesmos víamos, ainda que seja em miudezas, em atitude imperialistas com as nações oprimidas, quebrando destarte por completo toda a nossa sinceridade de princípios, toda a defesa que, consoante com os princípios, fazemos da luta contra o imperialismo. E a manhã da história universal será o dia em que despertem de vez s povos oprimidos pelo imperialismo, que já abriram os olhos, e que comece já a longa e dura batalha final pela sua emancipação.Lenine31.XII.22

A Instituição do Divórcio Não Destrói a Família


V. I. Lênin
12 de Março de 1922

Foi-me enviado recentemente o primeiro número (1922) da revista Ekonomist, publicada pela seção XI da «Associação Técnica Russa». O jovem comunista que me enviou essa revista (e que provavelmente não tinha tido tempo de tomar conhecimento do conteúdo), faz da mesma, imprudentemente, um julgamento de todo favorável. Ora, a revista é, não sei até que ponto conscientemente, o órgão dos atuais ultra-reacionários, que se cobrem, bem entendido, com o manto da ciência, do democratismo etc..
Um certo P. A. Sorokin publica nessa revista vastos estudos de pretensa «sociologia», Sobre a Influência da Guerra. Nesse sábio artigo pululam referências eruditas às obras «sociológicas» do autor e de seus numerosos mestres e colegas estrangeiros.
Eis qual é a sua «erudição».
Na página 83 lemos:
«Em Petrogrado sobre 10.000 casamentos se contam hoje 92,2 divórcios. Cifra fantástica: acrescentamos que, em 100 casamentos, 51,1 foram dissolvidos ao fim de menos de um ano, 11 ao fim de menos de um mês, 22 ao fim de menos de dois meses, 41 ao fim de menos de três a seis meses e apenas 26 ao fim de mais de seis meses. Esses dados provam que o casamento legal é atualmente uma formalidade que encobre relações sexuais substancialmente extraconjugais e permite aos amantes de 'aventuras' satisfazer legalmente seus 'apetites'» (Ekonomist, n.9 1, pág. 83).
Não há dúvida de que esses senhores e com eles a «Associação Técnica Russa» que publica a revista em questão e expõe tais argumentos se incluiriam entre os adeptos da democracia e se considerariam profundamente ofendidos se fossem chamados por seu verdadeiro nome, isto é: feudais, reacionários e «agentes diplomáticos do obscurantismo».
O conhecimento mesmo superficial da legislação dos países burgueses relativa ao casamento, ao divórcio e aos filhos naturais, como também da situação que de fato existe neles, mostrará a quem quer que se interesse pela questão, como a democracia burguesa dos nossos dias, mesmo nas repúblicas burguesas mais democráticas, tem a esse respeito uma atitude verdadeiramente feudal no que se refere à mulher e aos filhos naturais.
Isso naturalmente não impede aos mencheviques, aos social-revolucionários e a uma parte dos anarquistas, como também a todos os partidos correspondentes do Ocidente, de continuar a tagarelar sobre a democracia e sobre a violação da mesma por parte dos bolcheviques. Na realidade, justamente a revolução bolchevique é a única revolução democrática conseqüente diante das questões do casamento, do divórcio e da situação dos filhos naturais. E são questões que tocam muito diretamente os interesses de mais da metade da população de cada país. Apenas a revolução bolchevique sustentou nesse terreno, e pela primeira vez, apesar das múltiplas revoluções burguesas que a precederam e que se diziam democráticas, uma luta decidida tanto contra a reação e a sujeição, como contra a habitual hipocrisia das classes dirigentes e possuidoras. Se 92 divórcios sobre 10.000 casamentos parecem ao senhor Sorokin uma cifra fantástica, não nos resta supor senão que o autor não tenha vivido e tenha sido criado num mosteiro tão isolado da vida que dificilmente se pode crer na existência de tal mosteiro, ou então que deturpa a verdade para agradar a reação e a burguesia. Quem quer que conheça, ainda que pouco, as condições sociais existentes nos países burgueses, sabe que na realidade o número dos divórcios efetivamente realizados (não homologados, é claro, pela Igreja e pela lei) é em toda parte infinitamente superior. A esse respeito, a Rússia se distingue dos outros países apenas porque suas leis, ao invés de consagrarem a hipocrisia e a privação de direitos da mulher e dos seus filhos, declaram abertamente, em nome do Estado, uma guerra sistemática a qualquer hipocrisia e a qualquer privação de direitos.

Para o Quarto Aniversário da Revolução de Outubro


V. I. Lénine
14 de Outubro de 1921

Aproxima-se o quarto aniversário do 25 de Outubro (7 de Novembro).
Quanto mais se afasta de nós esse grande dia, mais claro se torna o significado da revolução proletária na Rússia e mais profundamente reflectimos também sobre a experiência prática do nosso trabalho, tomada no seu conjunto.
Esse significado e essa experiência poderiam expor-se muito brevemente — e, naturalmente, de forma muito incompleta e imprecisa — da seguinte maneira.
A tarefa imediata e directa da revolução na Rússia era uma tarefa democrático-burguesa: derrubar os restos do medievalismo, varrê-los definitivamente, limpar a Rússia dessa barbárie, dessa vergonha, desse enorme entrave para toda a cultura e todo o progresso no nosso país. E orgulhamo-nos justamente de ter feito essa limpeza com muito mais decisão, rapidez, audácia, êxito, amplitude e profundidade, do ponto de vista da influência sobre as massas do povo, sobre o grosso dessas massas, do que a grande revolução francesa há mais de 125 anos.
Tanto os anarquistas como os democratas pequeno-burgueses (isto é, os mencheviques e os socialistas-revolucionários como representantes russos deste tipo social internacional) disseram e dizem uma incrível quantidade de coisas confusas sobre a questão da relação entre a revolução democrático--burguesa e a socialista (isto é, proletária). Os quatro últimos anos confirmaram plenamente a justeza da nossa interpretação do marxismo sobre este ponto, do nosso modo de aproveitar a experiência das revoluções anteriores. Levámos, como ninguém, a revolução democrático-burguesa até ao fim. É de modo perfeitamente consciente, firme e inflexível que avançamos para a revolução socialista, sabendo que ela não está separada da revolução democrático-burguesa por uma muralha da China, sabendo que só a luta decidirá em que medida conseguiremos (em última análise) avançar, que parte da nossa tarefa infinitamente grande cumpriremos, que parte das nossas vitórias consolidaremos. O tempo o dirá. Mas vemos já agora que fizemos uma obra gigantesca — tendo em conta que se trata de um pais arruinado e atrasado — na transformação socialista da sociedade.
Mas terminemos com o que se refere ao conteúdo democrático-burguês da nossa revolução. Os marxistas devem compreender o que isto significa. Para o explicar, tomemos alguns exemplos eloquentes.
O conteúdo democrático-burguês da revolução significa depuração das relações (ordem, instituições) sociais de um país do medievalismo, da servidão, do feudalismo.
Quais eram as principais manifestações, sobrevivências e vestígios do regime de servidão na Rússia em 1917? A monarquia, o sistema dos estados sociais, as formas de propriedade da terra e o usufruto da terra, a situação da mulher, a religião, a opressão das nacionalidades. Tomai qualquer destes «estábulos de Augias» — que, diga-se de passagem, todos os Estados avançados deixaram em grande parte por acabar de limpar ao realizarem as suas revoluções democrático-burguesas há 125, 250 ou mais anos (em 1649 na Inglaterra) —, tomai qualquer destes estábulos de Augias: vereis que os limpámos a fundo. Numas dez semanas, de 25 de Outubro (7 de Novembro) de 1917 até à dissolução da constituinte (5 de Janeiro de 1918), fizemos neste domínio mil vezes mais do que os democratas burgueses e liberais (democratas-constitucionalistas) e os democratas pequeno-burgueses (mencheviques e socialistas-revolucionários), durante os oito meses do seu poder.
Esses cobardes, charlatães, Narcisos enfatuados e pequenos Hamlets brandiam uma espada de cartão e nem sequer destruíram a monarquia! Nós deitámos fora todo o lixo monárquico como ninguém o fez. Não deixámos pedra sobre pedra, tijolo sobre tijolo no edifício secular do sistema dos estados sociais (os países mais avançados, como a Inglaterra, a França e a Alemanha não se desembaraçaram ainda dos vestígios do sistema dos estados sociais!). Arrancámos definitivamente as raízes mais profundas do sistema dos estados sociais, a saber: os restos do feudalismo e da servidão na propriedade da terra. «Pode discutir-se» (no estrangeiro há bastantes literatos, democratas-constitucionalistas, mencheviques e socialistas-revolucionários, para se dedicarem a essas discussões) o que resultará «ao fim e ao cabo» das transformações agrárias da Grande Revolução de Outubro. Não estamos dispostos a perder agora tempo nessas discussões, porque é pela luta que resolvemos esta discussão e toda a quantidade de discussões que dela derivam. Mas o que não se pode contestar é o facto de que os democratas pequeno-burgueses estiveram oito meses a «entender-se» com os latifundiários, que conservavam as tradições da servidão, enquanto nós, em algumas semanas, varremos por completo da face da terra russa esses latifundiários e todas as suas tradições.
Tomai a religião, ou a falta de direitos da mulher, ou a opressão e a desigualdade de direitos das nacionalidades não russas. Tudo isso são questões da revolução democrático-burguesa. Os democratas pequeno-burgueses vulgares passaram oito meses a falar disso; não há nem um dos Países mais avançados do mundo onde estas questões tenham sido resolvidas até ao fim no sentido democrático-burguês. No nosso país, a legislação da Revolução de Outubro resolveu-os até ao fim. Lutámos e continuamos a lutar seriamente contra a religião. Demos a todas as nacionalidades não russas as suas próprias repúblicas ou regiões autónomas. Na Rússia não existe já essa vileza, essa infâmia e ignomínia que é a falta de direitos ou a restrição dos direitos da mulher, sobrevivência indigna da servidão e do medievalismo, renovada em todos os países do globo terrestre, sem uma só excepção, pela burguesia egoísta e pela pequena-burguesia obtusa e assustada.
Tudo isto é o conteúdo da revolução democrático-burguesa. Há cento e cinquenta e duzentos e cinquenta anos os chefes mais avançados dessa revolução (dessas revoluções, se falarmos de cada variedade nacional de um tipo comum) prometeram aos povos libertar a humanidade dos privilégios medievais, da desigualdade da mulher, das vantagens concedidas pelo Estado a uma ou outra religião (ou à «ideia de religião», à «religiosidade» em geral), da desigualdade de direitos das nacionalidades. Prometeram-no e não o cumpriram. E não podiam cumprir, porque os impedia o «respeito» . . . pela «sacrossanta propriedade privada». Na nossa revolução proletária não houve esse maldito «respeito» por esse três vezes maldito medievalismo e por essa «sacrossanta propriedade privada».
Mas para consolidar para os povos da Rússia as conquistas da revolução democrático-burguesa, nós devíamos ir mais longe, e fomos mais longe. Resolvemos as questões da revolução democrático-burguesa de passagem, como um «produto acessório» do nosso trabalho principal e verdadeiro, proletário revolucionário, socialista. Sempre dissemos que as reformas são um produto acessório da luta revolucionária de classe. As transformações democrático-burguesas — dissemo-lo e demonstrámo-lo com factos — são um produto acessório da revolução proletária, isto é, socialista. Digamos de passagem que todos os Kautskys, os Hilferdings, os Mártovs, os Tchernovs, os Hillquits, os Longuets os MacDonalds, os Turatis e outros heróis do marxismo «II 1/2» não souberam compreender esta correlação entre a revolução democrático-burguesa e a revolução proletária socialista. A primeira transforma-se na segunda. A segunda resolve de passagem os problemas da primeira. A segunda consolida a obra da primeira. A luta, e só a luta, determina até que ponto a segunda consegue ultrapassar a primeira.
O regime soviético é precisamente uma das confirmações ou manifestações evidentes dessa transformação duma revolução em outra. O regime soviético é o máximo de democracia para os operários e os camponeses e, ao mesmo tempo, significa a ruptura com a democracia burguesa e o aparecimento de um novo tipo de democracia de importância histórica mundial: a democracia proletária ou ditadura do proletariado.
Que os cães e os porcos da moribunda burguesia e da democracia pequeno-burguesa que se arrasta atrás dela nos cubram de maldições, de injúrias e de escárnios pelos insucessos e erros que cometemos ao construir o nosso regime soviético. Nem por um momento esquecemos que, de facto, tivemos e temos ainda muito insucessos e erros. E como havíamos de evitar insucessos e erros numa obra tão nova, nova para toda a história mundial, como é a criação de um tipo de regime estatal ainda desconhecido! Lutaremos sem descanso para corrigir os nossos insucessos e erros, para melhorar a forma como aplicamos os princípios soviéticos, que está ainda longe, muito longe, de ser perfeita. Mas temos o direito de nos orgulharmos e orgulhamo-nos de nos ter cabido a felicidade de iniciar a construção do Estado Soviético, de iniciar assim uma nova época da história universal, a época do domínio duma nova classe, oprimida em todos os países capitalistas e que avança em toda a parte para uma vida nova, para a vitória sobre a burguesia, para a ditadura do proletariado, para a libertação da humanidade do jugo do capital e das guerras imperialistas.
A questão das guerras imperialistas, da política internacional do capital financeiro, política que hoje domina em todo o mundo e que gera inevitavelmente novas guerras imperialistas, que gera inevitavelmente uma intensificação sem precedentes do jugo nacional, da pilhagem, da exploração, do estrangulamento de pequenas nacionalidades, fracas e atrasadas, por um punhado de potências «avançadas», é uma questão que desde 1914 se tornou a pedra angular de toda a política de todos os países do globo terrestre. É uma questão de vida ou de morte para dezenas de milhões de homens. Trata-se da questão de saber se na próxima guerra imperialista, que a burguesia prepara diante dos nossos olhos, que vai surgindo do capitalismo diante dos nossos olhos, morrerão vinte milhões de homens (em vez dos dez milhões que morreram na guerra de 1914-1918 e nas «pequenas» guerras que vieram completá-la e que ainda não terminaram), de saber se nessa futura guerra inevitável (se o capitalismo se mantiver) ficarão mutilados 60 milhões de homens (em vez dos 30 milhões de mutilados de 1914-1918). Também nesta questão a nossa Revolução de Outubro abriu uma nova época da história universal. Os lacaios da burguesia e os seus bajuladores, os socialistas-revolucionários e mencheviques, toda a democracia pequeno-burguesa pretensamente «socialista» de todo o mundo, troçaram da palavra de ordem de «transformação da guerra imperialista em guerra civil». Mas esta palavra de ordem revelou-se a única verdade — desagradável, brutal, nua e cruel, com efeito —, mas a verdade no meio da multidão das mais subtis mentiras chauvinistas e pacifistas. Essas mentiras vão-se desmoronando. Foi desmascarada a Paz de Brest. Cada novo dia desmascara mais implacavelmente o significado e as consequências duma paz ainda pior que a de Brest, a Paz de Versalhes. E perante milhões e milhões de homens que reflectem sobre as causas da guerra de ontem e sobre a guerra iminente de amanhã, ergue-se cada vez mais clara, nítida e inelutavelmente esta terrível verdade: é impossível sair da guerra imperialista e do mundo imperialista que a gera inevitavelmente (se tivéssemos a antiga ortografia eu escreveria aqui as duas palavras mir em ambos os seus significados), é impossível sair desse inferno a não ser por uma luta bolchevique e por uma revolução bolchevique.
Que a burguesia e os pacifistas, os generais e os pequenos burgueses, os capitalistas e os filisteus, todos os cristãos crentes e todos os cavaleiros das Internacionais II e II 1/2 insultem furiosamente esta revolução. Com nenhumas torrentes de raiva, de calúnias e de mentiras poderão ocultar o facto histórico universal de que, pela primeira vez desde há séculos e milénios, os escravos responderam à guerra entre escravistas proclamando abertamente esta palavra de ordem: transformemos essa guerra entre escravistas pela partilha do saque numa guerra dos escravos de todas as nações contra os escravistas de todas as nações.
Pela primeira vez depois de séculos e milénios, esta palavra de ordem transformou-se de esperança vaga e impotente num programa político claro e preciso, numa luta efectiva de milhões de oprimidos sob a direcção do proletariado, transformou-se na primeira vitória do proletariado, na primeira vitória da causa da supressão das guerras, da causa da aliança dos operários de todos os países, sobre a aliança da burguesia das diversas nações, da burguesia que faz umas vezes a paz e outras a guerra à custa dos escravos do capital, à custa dos operários assalariados, à custa dos camponeses, à custa dos trabalhadores.
Esta primeira vitória não é ainda a vitória definitiva, e a nossa Revolução de Outubro alcançou-a com privações e dificuldades inauditas, com sofrimentos sem precedentes, com uma série de enormes insucessos e erros da nossa parte. Como poderia um povo atrasado conseguir vencer sem insucessos e sem erros as guerras imperialistas dos países mais poderosos e avançados do globo terrestre? Não receamos reconhecer os nossos erros e encará-los-emos serenamente para aprender a corrigi-los. Mas os factos continuam a ser factos: pela primeira vez depois de séculos e milénios, a promessa de «responder» à guerra entre escravistas com a revolução dos escravos contra toda a espécie de escravistas foi cumprida até ao fim..... e é cumprida apesar de todas as dificuldades.
Nós começámos esta obra. Quando precisamente, em que prazo os proletários de qual nação culminarão esta obra — é uma questão não essencial. O essencial é que se quebrou o gelo, que se abriu caminho, que se indicou a via.
Continuai a vossa hipocrisia, senhores capitalistas de todos os países, que «defendeis a pátria» japonesa da americana, a americana da japonesa, a francesa da inglesa, etc! Continuai a «escamotear» a questão dos meios de luta contra as guerras imperialistas com novos «manifestos de Basileia» (segundo o modelo do Manifesto de Basileia de 1912), senhores cavaleiros das Internacionais II e II 1/2 e todos os pequenos burgueses e filisteus pacifistas de todo o mundo! A primeira revolução bolchevique arrancou a guerra imperialista, ao mundo imperialista, a primeira centena de milhões de homens da terra. As revoluções seguintes arrancarão a essas guerras e a esse mundo toda a humanidade.
A última tarefa — e a mais importante, e a mais difícil e a menos acabada — é a construção económica, o lançamento dos alicerces económicos do edifício novo, socialista, em lugar do edifício feudal destruído e do edifício capitalista semidestruído. É nessa tarefa, a mais importante e a mais difícil, que temos sofrido mais insucessos e cometido mais erros. Como se poderia começar sem insucessos e sem erros uma obra tão nova para todo o mundo? Mas começámo-la. E continuamo-la. Precisamente agora, com a nossa «nova política económica», corrigimos toda uma série dos nossos erros e aprendemos a prosseguir sem esses erros a construção do edifício socialista num país de pequenos camponeses.
As dificuldades são imensas. Estamos habituados a lutar contra dificuldades imensas. Por alguma razão os nossos inimigos nos chamaram «firmes como a rocha» e representantes de uma política de «partir ossos». Mas aprendemos também — pelo menos aprendemos até certo ponto — outra arte necessária na revolução: a flexibilidade, o saber mudar de táctica rápida e bruscamente, partindo das mudanças verificadas nas condições objectivas, e escolhendo outro caminho para os nossos objectivos se o caminho anterior se revelou inconveniente, impossível, para um período de tempo determinado.
Contávamos, levados por uma onda de entusiasmo, depois de despertar no povo um entusiasmo a princípio político e depois militar, contávamos realizar directamente, na base desse entusiasmo, tarefas económicas tão grandes (como as políticas, como as militares). Contávamos — ou talvez seja mais justo dizer: supúnhamos, sem ter calculado o suficiente — que com imposições directas do Estado proletário poderíamos organizar de maneira comunista, num país de pequenos camponeses, a produção estatal e a distribuição estatal, dos produtos. A vida mostrou o nosso erro. Foram necessárias diversas etapas transitórias, o capitalismo de Estado e o socialismo, para preparar — preparar com o trabalho de longos anos — a passagem ao comunismo. Não directamente na base do entusiasmo, mas com a ajuda do entusiasmo, entusiasmo gerado pela grande revolução, na base do interesse pessoal, na base do incentivo pessoal, na base do cálculo económico, trabalhai para construir primeiro sólidas pontes, que conduzam num país de pequenos camponeses ao socialismo através do capitalismo de Estado. De outro modo não vos aproximareis do comunismo, de outro modo não levareis ao comunismo dezenas e dezenas de milhões de homens. Eis o que nos disse a vida. Eis o que nos disse o curso objectivo do desenvolvimento da revolução.
E nós, que em três ou quatro anos aprendemos um pouco a fazer viragens bruscas (quando se exige uma viragem brusca), pusemo-nos com zelo, atenção e afinco (embora ainda com insuficiente zelo, insuficiente atenção e insuficiente afinco) a estudar uma nova viragem, a «nova política económica». O Estado proletário deve tornar-se um «patrão» prudente, diligente e hábil, um consciencioso comerciante por grosso — de outro modo não pode pôr economicamente de pé um país de pequenos camponeses; agora, nas condições actuais, ao lado do Ocidente capitalista (ainda capitalista), não há outra passagem para o comunismo. O comerciante por grosso parece um tipo económico tão afastado do comunismo como o céu da terra. Mas esta é precisamente uma das contradições que na vida real conduzem da pequena exploração camponesa ao socialismo, através do capitalismo de Estado. O incentivo pessoal eleva a produção; nós necessitamos, antes de mais nada e a todo o custo, de aumentar a produção. O comércio por grosso une economicamente milhões de pequenos camponeses, incentivando-os, ligando-os, conduzindo-os à etapa seguinte: às diversas formas de ligação e de união na própria produção. Iniciámos já a necessária transformação da nossa política económica. Neste domínio temos já alguns êxitos, é certo que pequenos, parciais, mas indubitáveis. Estamos já a terminar, neste domínio da nova «ciência», o ano preparatório. Estudando com firmeza e perseverança, verificando com a experiência prática cada um dos nossos passos, não receando refazer mais de uma vez aquilo que começámos nem corrigir os nossos erros, examinando atentamente o seu significado, passaremos também nos anos seguintes. Faremos todo o «curso», embora as circunstâncias da economia mundial e da política mundial tenham tornado isto mais longo e difícil do que teríamos desejado. Custe o que custar, por muito penoso que sejam os sofrimentos do período de transição, as calamidades, a fome, a ruína, não nos deixaremos abater e levaremos a nossa obra até ao final vitorioso.

O Dia Internacional da Mulher(1920)


V. I. Lênin
7 de Março de 1920
O capitalismo alia à igualdade puramente formal a desigualdade econômica e, portanto, social. Essa é uma de suas características fundamentais hipocritamente dissimulada pelos defensores da burguesia, pelos liberais e não compreendida pelos democratas pequeno-burgueses. Dessa característica do capitalismo decorre, entre outras coisas, a necessidade, na luta decidida pela igualdade econômica, de reconhecer abertamente a desigualdade capitalista e, mesmo, em certas condições de colocar esse reconhecimento explicito da desigualdade na base do Estado proletário (Constituição soviética).
Mas, mesmo no que se refere à igualdade formal (igualdade diante da lei, a «igualdade» entre o bem nutrido e o esfaimado, entre o possuidor e o espoliado), o capitalismo não pode dar prova de coerência. E uma das manifestações mais eloqüentes de sua incoerência é a desigualdade entre o homem e a mulher.
Nenhum Estado burguês, por mais progressista republicano e democrático que fosse, concedeu completa igualdade de direitos ao homem e à mulher.
Ao contrário, a República da Rússia Soviética varreu para sempre, de um só golpe, sem exceção, todos os resquícios das leis que colocavam os dois sexos em condições desiguais e garantiu imediatamente à mulher a igualdade jurídica mais completa.
Já se disse que o índice mais importante do progresso de um povo é a situação jurídica da mulher. Existe nessa fórmula um grão de profunda verdade. Desse ponto de vista, apenas a ditadura do proletariado, apenas o Estado socialista, podia alcançar e alcançou o grau mais avançado do progresso.
Por isso o novo impulso, de força sem precedentes, do movimento operário feminino está ligado à criação (e à consolidação) da primeira república dos sovietes e, ao mesmo tempo, da Internacional Comunista.
Aqueles a quem o capitalismo oprimia de modo direto ou indireto, total ou parcial, o regime dos sovietes — e apenas este regime — assegura a democracia. As condições da classe operária e dos camponeses mais pobres comprovam-no claramente. Comprovam-no claramente as condições da mulher.
Mas a regime dos sovietes é o instrumento da luta final, decisiva, pela abolição das classes, pela igualdade econômica e social. Não nos basta democracia, mesmo a democracia para os oprimidos pelo capitalismo, nestes se incluindo o sexo oprimido.
O movimento operário feminino propõe-se como tarefa principal a luta por conquistar para a mulher a igualdade econômica e social e não apenas igualdade formal. Fazer a mulher participar do trabalho social produtivo, arrancá-la da «escravidão doméstica», libertá-la do jugo degradante e humilhante, eterno e exclusivo do ambiente da cozinha e do quarto dos filhos: eis a principal tarefa.
Será uma luta prolongada porque exige a transformação radical da técnica social e dos costumes. Mas terminará com a vitória completa do comunismo.

Às Operárias


Camaradas! As eleições para o Soviete de Moscou devem provar que o Partido Comunista se afirma no seio da classe operária.
As operárias devem participar em maior número das eleições. Primeiro e único no mundo, o poder dos sovietes aboliu completamente todas as velhas leis burguesas, as abomináveis leis que punham a mulher num estado de inferioridade em relação ao homem, que reconheciam ao homem, para citar apenas- um exemplo, uma posição de privilégio na esfera do direito matrimonial e das relações com os filhos. Primeiro e único no mundo, o poder dos sovietes, como poder dos trabalhadores, aboliu todas aquelas vantagens que, originadas da propriedade, ainda hoje são atribuídas ao homem no direito familiar nas repúblicas burguesas mais democráticas.
Onde existem latifundiários, capitalistas e comerciantes, não pode existir a igualdade entre o homem e a mulher, nem mesmo diante da lei.
Onde não existem latifundiários, capitalistas e comerciantes, onde o poder dos trabalhadores constrói uma nova vida sem tais exploradores, existe diante da lei a igualdade entre o homem e a mulher.
Mas não basta.
A igualdade diante da lei não é ainda a igualdade efetiva.
É preciso que a operária conquiste a igualdade com o operário não somente diante da lei, mas também de fato. Por isso as operárias devem participar em medida cada vez maior da gestão das empresas públicas e da administração do estado.
As mulheres farão rapidamente sua aprendizagem na administração e estarão à altura dos homens.
Elegei, portanto, para o soviete um maior número de operárias, tanto comunistas como sem-partido. Desde que uma operária seja honesta, conscienciosa e dê bom rendimento no trabalho, que importa que não pertença ao Partido? Elegei-a para o Soviete de Moscou!
Mais operárias para o Soviete de Moscou! Demonstre o proletariado moscovita que está disposto a fazer tudo, e que tudo faz para lutar até a vitória, para lutar contra a velha desigualdade, contra o antigo aviltamento burguês da mulher!
O proletariado não alcançará a emancipação completa se não for conquistada primeiro a completa emancipação das mulheres!

O Poder Soviético e a Situação da Mulher

V. I. Lênin
06 de Novembro de 1919
O segundo aniversário do poder soviético nos impõe passar em revista tudo aquilo que foi realizado no decorrer desse período e refletir sobre a significação e os fins da revolução que realizamos.
A burguesia e seus defensores nos acusam de haver violado a democracia. Declaramos que a revolução soviética deu à democracia um impulso sem precedentes, tanto em amplitude como em profundidades; esse impulso ela o deu precisamente à democracia para as massas trabalhadoras exploradas pelo capitalismo, isto é, à democracia para a imensa maioria do povo, à democracia socialista (para os trabalhadores), que se deve distinguir da democracia burguesa (para os exploradores, os capitalistas, os ricos).
Com quem está a razão?
Refletir sobre esse problema e aprofundá-lo, significa levar em conta a experiência desses dois anos e preparar-se melhor para seu posterior desenvolvimento.
A posição da mulher põe particularmente em evidência a diferença entre a democracia burguesa e a socialista e dá uma resposta particularmente clara ao problema que antes levantamos.
Em nenhuma república burguesa (isto é, onde existe a propriedade privada da terra, das fábricas, das minas, das ações, etc.) mesmo na mais democrática, em nenhum lugar do mundo, mesmo no país mais avançado, a mulher goza de plena igualdade de direitos. E isso apesar de haverem decorrido 130 anos desde a grande revolução francesa democrático-burguesa.
Em palavras, a burguesia democrática promete a igualdade e a liberdade, mas, de fato, até mesmo a república burguesa mais avançada não deu à metade feminina do gênero humano, a plena igualdade jurídica com o homem, nem a libertou da tutela e da opressão deste último.
A democracia burguesa é uma democracia feita de frases pomposas, de expressões altissonantes, de promessas grandiloqüentes, de belas palavras de ordem de liberdade e de igualdade, mas, na realidade, dissimula a falta de liberdade e de igualdade da mulher, a falta de liberdade e de igualdade dos trabalhadores e explorados.
A democracia soviética ou socialista repele o verbalismo pomposo e falso, declara guerra impiedosa à hipocrisia dos «democratas», dos latifundiários, dos capitalistas ou dos camponeses bem alimentados que se enriquecem vendendo a preços exorbitantes seus excedentes de trigo aos operários famintos.
Abaixo esta mentira ignóbil! A «igualdade» entre opressores e oprimidos, entre explorados e exploradores é impossível, não existe e jamais existirá. Não pode haver, não há e não haverá verdadeira «liberdade» enquanto a mulher não for libertada dos privilégios que a lei reconhece ao homem, enquanto o operário não for libertado do jugo do capital, enquanto o camponês trabalhador não for libertado do jugo do capitalista, do latifundiário, do comerciante .
A que ponto os mentirosos e os hipócritas, os imbecis e os cegos, os burgueses e seus defensores enganam o povo falando-lhe de liberdade, de igualdade, de democracia em geral!
Nós dizemos aos operários e aos camponeses: arrancai a máscara desses mentirosos, abri os olhos desses cegos. Perguntai-lhes:
Igualdade de que sexo com que sexo?
De que nação com que nação?
De que classe com que classe?
Liberdade de que jugo ou do jugo de que classe?
Liberdade para que classe?
Quem fala de política, de democracia, de liberdade, de igualdade, de socialismo, sem fazer tais perguntas e sem colocá-las no primeiro plano sem lutar contra as tentativas de esconder, dissimular e silenciar tais problemas, é o pior inimigo dos trabalhadores, um lobo na pele de cordeiro, o pior inimigo dos operários e dos camponeses, um servidor dos grandes latifundiários, do tzar, dos capitalistas.
Em dois anos, em um dos países mais atrasados da Europa, o poder soviético fez pela emancipação da mulher, por sua igualdade com o sexo «forte», mais do que haviam feito todas as republicas avançadas, cultas, «democráticas» do mundo inteiro, no curso de cento e trinta anos.
Educação, cultura, civilização, liberdade: a todas essas palavras altissonantes, em toda república burguesa, capitalista, do mundo correspondem leis incrivelmente abjetas, de vilania repelente, grosseiramente bestiais, que consagram a desigualdade jurídica da mulher no que se refere ao casamento e ao divórcio, sancionam a desigualdade entre os filhos naturais e os «legítimos» e, atribuindo privilégios aos homens, humilham e ofendem a mulher. O jugo do capital, a opressão da «sagrada propriedade privada», o despotismo da estupidez burguesa, a cobiça do pequeno patrão impediram às repúblicas burguesas mais democráticas tocar nessas leis vis e abjetas.
A República dos Sovietes, a república dos operários e dos camponeses, varreu de um golpe, para sempre, todas essas leis, não deixando pedra sobre pedra dos edifícios construídos pela mentira e hipocrisia burguesas.
Abaixo essa mentira! Abaixo os mentirosos que falam de liberdade e de igualdade para todos, quando existe um sexo oprimido e classes de opressores, quando existe a propriedade privada do capital e das ações, quando existem indivíduos que engordam com seus excedentes de trigo e subjugam os esfaimados.
Não liberdade para todos, não igualdade para todos, mas luta contra os opressores e os exploradores, liquidação de qualquer possibilidade de oprimir e de explorar. Esta é a nossa palavra de ordem!
Liberdade e igualdade para o sexo oprimido!
Liberdade e igualdade para o operário, para o camponês trabalhador!
Luta contra os opressores, contra os capitalistas, contra o culaque especulador!
Este o nosso grito de guerra, nossa verdade proletária, a verdade da luta contra o capital, a verdade que lançamos à face do mundo capitalista, este mundo de frases melífluas, hipócritas, grandiloqüentes, sobre a liberdade e a igualdade em geral, sobre a liberdade e a igualdade para todos.
E justamente porque arrancamos a máscara a essa hipocrisia, porque, com energia revolucionária, realizamos a liberdade e a igualdade para os oprimidos e os trabalhadores, contra os opressores, os capitalistas e os culaques, justamente por isso, o poder soviético se tornou tão querido aos operários do mundo inteiro.
Justamente por isso contamos hoje, no segundo aniversário do poder soviético, com a simpatia das massas operárias, dos oprimidos e dos explorados de todos o.s países do mundo.
Justamente por isso, no segundo aniversário do poder soviético, apesar da fome e do frio, apesar de todas as desventuras que nos acarretou a invasão da República Soviética Russa por parte dos imperialistas, estamos absolutamente certos de que nossa causa é justa e de que o poder soviético está destinado a vencer em todo o mundo.

A Economia e a Política na Época da Ditadura do Proletariado


V. I. Lénine
30 de Outubro de 1919

Tencionava escrever para o segundo aniversário do Poder Soviético uma pequena brochura sobre o tema indicado no título. Mas na azáfama do trabalho diário não consegui até agora ir além da preparação preliminar de algumas partes. Por isso decidi fazer a experiência de uma exposição breve e sumária das ideias mais essenciais, em meu entender, sobre esta questão. Naturalmente, o carácter sumário da exposição encerra muitas desvantagens e defeitos. Mas talvez para um pequeno artigo jornalístico seja realizável este modesto objectivo: formular a questão e o pano de fundo para a sua discussão pelos comunistas dos diferentes países.
Teoricamente, não há dúvidas de que entre o capitalismo e o comunismo existe um certo período de transição. Ele não pode deixar de reunir em si os traços ou as propriedades de ambos estes regimes de economia social. Este período de transição não pode deixar de ser um período de luta entre o capitalismo agonizante e o comunismo nascente; ou, por outras palavras, entre o capitalismo vencido, mas não aniquilado, e o comunismo já nascido, mas ainda muito débil.
A necessidade de toda uma época histórica, que se distinga por estes traços do período de transição deve ser clara por si mesma, não só para um marxista, mas para qualquer pessoa instruída que conheça de um ou doutro modo a teoria do desenvolvimento. E no entanto, todos os raciocínios sobre a passagem ao socialismo que ouvimos aos actuais representantes da democracia pequeno-burguesa (como são, apesar da sua etiqueta pretensamente socialista, todos os representantes da II Internacional, incluindo homens como MacDonald e Jean Longuet, Kautsky e Friedrich Adler) distinguem-se por um esquecimento completo desta verdade evidente. São próprios dos democratas pequeno-burgueses a aversão pela luta de classes, os sonhos sobre a possibilidade de prescindir dela, a aspiração a atenuar, conciliar e limar as suas arestas agudas. Por isso tais democratas ou recusam qualque reconhecimento de toda a fase histórica de transição do capitalismo para o comunismo ou consideram que a sua tarefa é inventar planos para conciliar ambas as forças em luta, em vez de dirigir a luta de uma dessas forças.
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Na Rússia a ditadura do proletariado deve distinguir-se inevitavelmente por algumas particularidades em comparação com os países avançados, como consequência do atraso muito grande e do carácter pequeno-burguês do nosso país. Mas as forças fundamentais — e as formas fundamentais da economia social — são, na Rússia, as mesmas que em qualquer país capitalista, pelo que essas particularidades só podem referir-se àquilo que não é essencial.
Estas formas fundamentais da economia social são: o capitalismo, a pequena produção mercantil e o comunismo. Estas forças fundamentais são: a burguesia, a pequena burguesia (especialmente os camponeses) e o proletariado.
A economia da Rússia na época da ditadura do proletariado representa a luta dos primeiros passos do trabalho unido segundo o princípio comunista — à escala única de um enorme Estado — contra a pequena produção mercantil, contra o capitalismo que subsiste e contra o que renasce na base dela. O trabalho está unido na Rússia segundo o princípio comunista porquanto, primeiro, está abolida a propriedade privada dos meios de produção e, segundo, porquanto o poder de Estado proletário organiza à escala nacional a grande produção nas terras estatais e nas empresas estatais, distribui a mão-de-obra entre os diferentes ramos da economia e entre as empresas, distribui entre os trabalhadores grandes quantidades de artigos de consumo pertencentes ao Estado.
Falamos nos «primeiros passos» do comunismo na Rússia (como o diz também o programa do nosso partido aprovado em Março de 1919), pois todas estas condições foram realizadas no nosso país apenas em parte, ou, por outras palavras: a realização destas condições encontra-se apenas no estádio inicial. De uma só vez, com um só golpe revolucionário, fez-se tudo quanto se pode, em geral, fazer de um só golpe: por exemplo, logo no primeiro dia da ditadura do proletariado, em 26 de Outubro de 1917 (8 de Novembro de 1917), foi abolida a propriedade privada da terra sem indemnização dos grandes proprietários, foram expropriados, também sem indemnização, quase todos os grandes capitalistas, os proprietários das fábricas, de empresas por acções, de bancos, de caminhos-de-ferro, etc. A organização pelo Estado da grande produção industrial e a transição do «controlo operário» para «administração operária» das fábricas e caminhos-de-ferro estão já realizados nos seus traços fundamentais e principais, mas no que respeita à agricultura isso está apenas a começar (as «explorações soviéticas», grandes explorações organizadas pelo Estado operário nas terras do Estado). Do mesmo modo, está apenas a começar a organização das diversas formas de cooperação dos pequenos agricultores como transição da pequena produção agrícola mercantil para a comunista. O mesmo se deve dizer da organização estatal da distribuição dos produtos em substituição do comércio privado, isto é, do armazenamento e do fornecimento estatais de cereais para as cidades e de artigos industriais para o campo. Daremos mais adiante os dados estatísticos que possuímos sobre esta questão.
A economia camponesa continua a ser a pequena produção mercantil. Temos aqui uma base extraordinariamente ampla para o capitalismo, dotada de raízes muito profundas e muito sólidas. Sobre esta base o capitalismo mantém-se e renasce de novo, numa luta agudíssima contra o comunismo. As formas desta luta são: a traficância e a especulação contra a armazenagem dos cereais pelo Estado (assim como de outros produtos) e em geral contra a distribuição dos produtos pelo Estado.
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Para ilustrar estas teses teóricas abstractas, citaremos dados concretos. O armazenamento estatal de cereais na Rússia, segundo dados do Komprod (Comissariado do Povo do Abastecimento), deu, desde 1 de Agosto de 1917 a 1 de Agosto de 1918, cerca de 30 milhões de puds. No ano seguinte, cerca de 110 milhões de puds. Nos primeiros três meses da campanha seguinte (1919-1920), os armazenamentos alcançarão, provavelmente, cerca de 45 milhões de puds, contra 37 milhões de puds nos mesmos meses (Agósto-Outubro) de 1918.
Estes números falam claramente de um melhoramento lento mas constante no sentido da vitória do comunismo sobre o capitalismo. Este melhoramento é obtido apesar das dificuldades nunca vistas no mundo causadas pela guerra civil, que os capitalistas russos e estrangeiros organizam, pondo em tensão todas as forças das potências mais poderosas do mundo.
Por isso, por mais que mintam e caluniem os burgueses de todos os países e os seus cúmplices declarados e encobertos (os «socialistas» da II Internacional), uma coisa é indubitável: do ponto de vista do problema económico fundamental da ditadura do proletariado, está assegurada no nosso país a vitória do comunismo sobre o capitalismo. A burguesia de todo o mundo está enraivecida e furiosa contra o bolchevismo, organiza invasões militares, conspirações, etc, contra os bolcheviques, precisamente porque compreende muito bem a inevitabilidade da nossa vitória na reestruturação da economia social, a menos que nos esmague a força militar. Mas não consegue esmagar-nos por esse processo.
Os seguintes números globais permitem ver precisamente em que medida vencemos já o capitalismo, no curto prazo que nos foi dado e com as dificuldades nunca vistas no mundo sob as quais tivemos de agir. A Direcção Central de Estatística acaba de preparar para a imprensa dados sobre a produção e o consumo de cereais, não em toda a Rússia Soviética, mas em 26 de suas províncias.
Os resultados obtidos são os seguintes:
26 provínciasdaUnião Soviética
População(em milhões)
Produção decereais(sem sementese sem forragens)(em milhõesde puds)
Cereais fornecidos
Quantidade totalde cereais à disposiçãoda população(em milhões de puds)
Consumo de cereaispor habitante(em puds)
peloKomprod
pelostraficantes
(em milhõesde puds)
Provínciasprodutoras
Cidades 4,4

20,9
20,6
41,5
9,5
Aldeias 28,6
625,4


481,8
16,9
Províncias consumidoras
Cidades 5,9

20,0
20,0
40,0
6,8
Aldeias 13,8
114,0
12,1
27,8
151,4
11,0
Total(26 províncias)
552,7
739,4
53,0
68,4
714,7
13,6
Assim, o Komprod forneceu cerca de metade dos cereais às cidades e a outra metade os traficantes. Um inquérito preciso sobre a alimentação dos operários das cidades em 1918 deu precisamente esta proporção. Além disso, o operário paga nove vezes menos pelos cereais fornecidos pelo Estado do que pelos especuladores. O preço especulativo dos cereais é dez vezes superior ao preço estatal. Assim fala o estudo preciso dos orçamentos operários.
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Os dados acima indicados, se se reflectir bem neles, fornecem um material preciso que descreve todos os traços fundamentais da economia actual da Rússia.
Os trabalhadores foram libertos dos opressores e exploradores seculares, os latifundiários e os capitalistas. Este passo em frente da verdadeira liberdade e da verdadeira igualdade, passo que pela sua grandeza, envergadura e rapidez não tem precedentes no mundo, não é tido em conta pelos partidários da burguesia (incluindo os democratas pequeno-burgueses), que falam da liberdade e da igualdade no sentido da democracia burguesa parlamentar, proclamando-a falsamente «democracia» em geral ou «democracia pura» (Kautsky).
Mas os trabalhadores têm em conta precisamente a verdadeira igualdade, a verdadeira liberdade (liberdade em relação aos latifundiários e aos capitalistas), e por isso apoiam com tanta firmeza o Poder Soviético.
Neste país camponês, foram os camponeses em geral os primeiros a ganhar, os que mais ganharam e os que ganharam de imediato com a ditadura do proletariado. Sob os latifundiários e capitalistas, na Rússia, o camponês passava fome. Durante longos séculos da nossa história, o camponês jamais teve a possibilidade de trabalhar para si: passava fome, entregando centenas de milhões de puds de cereais aos capitalistas, para as cidades e para o estrangeiro. Sob a ditadura do proletariado, o camponês trabalhou pela primeira vez para si alimentou-se melhor que o habitante da cidade. O camponês viu pela primeira vez a liberdade de facto: a liberdade de comer o seu próprio pão, a liberdade de não passar fome. Estabeleceu-se, como se sabe, a máxima igualdade na distribuição da terra: na grande maioria dos casos, os camponeses repartem a terra «segundo o número de bocas».
O socialismo é a supressão das classes.
Para suprimir as classes é preciso, em primeiro lugar, derrubar os latifundiários e os capitalistas. Esta parte da tarefa já a realizámos, mas é apenas uma parte e, além disso, não é a mais difícil. Para suprimir as classes é preciso, em segundo lugar, suprimir a diferença entre os operários e os camponeses, transformá-los todos em trabalhadores. Isto não se pode fazer de repente. É uma tarefa incomparavelmente mais difícil e, por força da necessidade, prolongada. É uma tarefa que não se pode realizar pelo derrubamento de uma classe. Só é possível realizá-la pela reconstrução organizativa de toda a economia social, pela passagem da pequena economia mercantil, individual, isolada, à grande economia social. Esta transição é por força extraordinariamente longa. As medidas administrativas e legislativas precipitadas e imprudentes só podem tornar esta transição mais lenta e difícil. Só se pode apressar esta transição prestando ao camponês uma ajuda que lhe dê a possibilidade de melhorar em grandes proporções toda a técnica agrícola, de a transformar radicalmente.
Para realizar a segunda parte da tarefa, a mais difícil, o proletariado, depois de ter vencido a burguesia, deve aplicar invariavelmente a seguinte linha fundamental na sua política em relação ao campesinato: o proletariado deve separar, delimitar o camponês trabalhador do camponês proprietário, o camponês que trabalha do camponês negociante, o camponês laborioso do camponês especulador.
E nessa delimitação que reside toda a essência do socialismo. E não é de espantar que os socialistas em palavras e democratas pequeno-burgueses de facto (os Mártov e Tchernov, os Kautsky e C.a) nao compreendam esta essência do socialismo.
A delimitação aqui indicada é muito difícil, porque na vida real todos os traços próprios do «camponês», por mais variados e contraditórios que sejam, fundem-se num todo único. A delimitação é no entanto possível, e nao só possível como decorre inevitavelmente da economia camponesa e da vida camponesa. O camponês trabalhador foi oprimido ao longo dos séculos pelos latifundiários, pelos capitalistas, pelos negociantes, pelos especuladores e pelo seu Estado, incluindo as repúblicas burguesas mais democráticas. O camponês trabalhador foi formando ao longo dos séculos o seu ódio e a sua hostilidade a esses opressores e exploradores, e essa «formação», dada pela vida, obriga o camponês a procurar a aliança com o operário contra o capitalista, contra o especulador, contra o negociante. Mas ao mesmo tempo, a situação económica, a situação da economia mercantil, faz necessariamente do camponês (nem sempre, mas na grande maioria dos casos) um negociante e um especulador.
Os dados estatísticos por nós citados acima mostram claramente a diferença entre o camponês trabalhador e o camponês especulador. O camponês que, em 1918-1919, forneceu aos operários famintos das cidades 40 milhões de puds de cereais e preços fixos, estatais, que os entregou nas mãos dos órgãos estatais apesar de todas as insuficiências destes órgãos, das quais o governo operário está perfeitamente consciente, mas que não se podem eliminar no primeiro período de transição para o socialismo, esse camponês é um camponês trabalhador, é um camarada de pleno direito do operário socialista, o seu aliado mais seguro, seu irmão na luta contra o jugo do capital. Mas o camponês que vendeu às escondidas 40 milhões de puds de cereais a um preço dez vezes mais alto que o estatal, utilizando a necessidade e a fome do operário da cidade, enganando o Estado, aumentando e criando por toda a parte o engano, a pilhagem, a traficância, esse camponês é um especulador, aliado do capitalista, é um inimigo de classe do operário, é um explorador. Pois tem excedentes de cereais colhidos na terra pertencente ao Estado, com a ajuda de instrumentos na criação dos quais está de um modo ou de outro investido trabalho não só do camponês, mas também do operário, etc, ter excedente de cereais e especular com eles significa ser um explorador do operário faminto.
Vós violais a liberdade, a igualdade, a democracia, gritam-nos de todos os lados, apontando a desigualdade entre o operário e o camponês na nossa Constituição, a dissolução da Constituinte, a recolha pela força dos excedentes de cereais, etc. Nós respondemos: nunca houve no mundo um Estado que tenha feito tanto para suprimir a desigualdade de facto, a falta de liberdade de facto de que o camponês laborioso tem sofrido durante séculos. Mas nunca reconheceremos a igualdade com o camponês especulador, como não reconheceremos a «igualdade» do explorador com o explorado, do saciado com o faminto, a «liberdade» do primeiro de roubar o segundo. E trataremos os homens instruídos que não querem compreender esta diferença como tratámos os guardas brancos, ainda que esses homens se chamem democratas, socialistas, internacionalistas, Kautskys, Tchernovs, Mártovs.
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O socialismo é a supressão das classes. A ditadura do proletariado fez tudo o que podia para essa supressão. Mas é impossível suprimir as classes de repente.
E as classes mantiveram-se e manter-se-ão durante a época da ditadura do proletariado. A ditadura tornar-se-á inútil quando as classes tiverem desaparecido. Sem a ditadura do proletariado elas não desaparecerão.
As classes mantiveram-se, mas cada uma delas modificou-se na época da ditadura do proletariado; modificaram-se também as suas inter-relações. A luta de classes não desaparece sob a ditadura do proletariado, toma apenas outras formas.
No capitalismo o proletariado era uma classe oprimida, uma classe privada de toda a propriedade sobre os meios de produção, a única classe directa e inteiramente oposta à burguesia e, por conseguinte, a única capaz de ser revolucionária até ao fim. Depois de ter derrubado a burguesia e conquistado o poder político, o proletariado tornou-se a classe dominante: ele detém nas suas mãos o poder de Estado, dispõe dos meios de produção já socializados, dirige os elementos e as classes vacilantes, intermédios, reprime a energia crescente da resistência dos exploradores. Todas estas são tarefas particulares da luta de classes, tarefas que o proletariado não colocava nem podia colocar anteriormente.
A classe dos exploradores, dos latifundiários e dos capitalistas, não desapareceu nem pode desaparecer de repente sob a ditadura do proletariado. Os exploradores foram derrotados, mas não aniquilados. Continuam a ter uma base internacional, o capital internacional, de que eles são uma sucursal. Continuam a ter em parte alguns meios de produção, continuam a ter dinheiro, continuam a ter grande número de relações sociais. A energia da sua resistência cresceu centenas e milhares de vezes, precisamente em consequência da sua derrota. A «arte» de dirigir o Estado, o exército, a economia, dá-lhes uma superioridade muito grande, de modo que a sua importância é incomparavelmente maior do que a sua parte no conjunto da população. A luta de classe dos exploradores derrubados contra a vanguarda vitoriosa dos explorados, isto é, contra o proletariado, tornou-se infinitamente mais encarniçada. E não poderia ser doutro modo se se fala de revolução, se não se substitui este conceito (como fazem todos os heróis da II Internacional) pelas ilusões reformistas.
Por último, o campesinato, como toda a pequena burguesia em geral, ocupa também sob a ditadura do proletariado uma posição média, intermédia: por um lado, representa uma massa bastante considerável (imensa na Rússia atrasada) de trabalhadores, unida pelo interesse comum aos trabalhadores de se libertar dos latifundiários e dos capitalistas; por outro lado, são pequenos patrões, proprietários e comerciantes isolados. Esta situação económica provoca inevitavelmente vacilações entre o proletariado e a burguesia. E nas condições da luta exacerbada entre estes últimos, nas condições de uma ruptura incrivelmente brusca de todas as relações sociais, nas condições do enorme apego precisamente da parte dos camponeses e dos pequenos burgueses em geral àquilo que é velho, rotineiro, imutável, é natural que observemos inevitavelmente entre eles passagens de um campo para outro, vacilações, viragens, incerteza, etc.
A tarefa do proletariado em relação a esta classe — ou a estes elementos sociais — consiste em dirigi-los, em lutar pela influência sobre eles. Levar atrás de si os vacilantes, os instáveis, eis o que deve fazer o proletariado.
Se confrontarmos todas as forças ou classes fundamentais e as suas inter-relações modificadas pela ditadura do proletariado, veremos que ilimitado absurdo teórico, que estupidez é a concepção pequeno-burguesa corrente da transição para o socialismo «através da democracia» em geral, que vemos em todos os representantes da II Internacional. A base deste erro reside no preconceito herdado da burguesia de que a «democracia» tem um conteúdo absoluto, acima das classes. Mas, na realidade, a democracia entra também numa fase absolutamente nova sob a ditadura do proletariado, e a luta de classes eleva-se a um grau superior, submetendo a si todas e quaisquer formas.
As frases gerais sobre a liberdade, a igualdade e a democracia equivalem de facto a uma cega repetição de conceitos que são uma cópia das relações da produção mercantil. Querer resolver por meio dessas frases gerais as tarefas concretas da ditadura do proletariado significa passar em toda a linha para a posição teórica, de princípio, da burguesia. Do ponto de vista do proletariado, a questão coloca-se unicamente assim: liberdade de não ser oprimido por que classe? igualdade de qual classe com qual outra? democracia na base da propriedade privada ou na base da luta pela abolição da propriedade privada? etc.
Engels esclareceu há muito no Anti-Duhring que o conceito de igualdade, sendo uma cópia das relações da produção mercantil, se transforma em preconceito se não se compreender a igualdade no sentido da supressão das classes. Esta verdade elementar sobre a distinção entre o conceito de igualdade democrático burguês e o socialista é constantemente esquecida. E se não a esquecermos, torna-se evidente que o proletariado, ao derrubar a burguesia, dá com isto o passo mais decisivo para a supressão das classes e que, para o completar, o proletariado deve prosseguir a sua luta de classe utilizando o aparelho do poder de Estado e aplicando diversos métodos de luta, de influência, de acção em relação à burguesia derrubada e em relação à Pequena burguesia vacilante.
30.X.1919.

As Tarefas do Movimento Operário Feminino na República dos Sovietes

Camaradas!
Sinto-me feliz de trazer minha saudação à Conferência das Mulheres Operárias. Permitir-me-eis não tratar dos assuntos e dos problemas que hoje, necessariamente, preocupam mais que qualquer outra coisa todas as operárias e todos os elementos conscientes das massas trabalhadoras. Os problemas mais candentes são os do pão e de nossa situação militar. Mas, segundo o que apreendi dos informes de vossas reuniões, publicados nos jornais, esses temas foram aqui analisados exaustivamente pelo camarada
Trotski, no que se refere ao problema militar, e pelos camaradas Jakovleva e Sviderski, no que concerne ao pão; permiti-me, portanto, não tratar dos mesmos.
Desejo dizer-vos algumas palavras sobre as tarefas gerais do movimento operário feminino na República dos Sovietes, tanto sobre aquelas que se ligam à passagem para o socialismo em geral, como sobre aquelas que atualmente se colocam em primeira plano, por sua urgência particular. Camaradas, o poder soviético enfrentou desde o início o problema da situação da mulher. A meu ver, todo Estado operário que se encaminhe para o socialismo, deverá cumprir uma dupla tarefa. A primeira parte dessa tarefa é relativamente simples e fácil: diz respeito às velhas leis que colocaram a mulher num estado de inferioridade em relação ao homem.
Desde muito tempo, não apenas há dezenas de anos mas há séculos, os representantes de todos os movimentos de libertação na Europa ocidental reivindicam a revogação dessas leis caducas e a instauração da igualdade jurídica entre homens e mulheres, mas nem um só dos estados democráticos europeus, nem uma só das repúblicas mais avançadas soube vir ao encontro dessa reivindicação porque, onde existe o capitalismo, onde se mantém a propriedade privada da terra, das fábricas e das oficinas, onde se mantém o poder do capital, continua inalterada a situação privilegiada dos homens. Na Rússia, essa reivindicação só pôde ser realizada porque, depois de 25 de outubro de 1917, foi instaurado o poder dos operários. O poder soviético propôs-se a tarefa, desde o início, de ser de fato o poder dos trabalhadores inimigo de de toda forma de exploração. Propôs-se a tarefa de arrancar pela raiz as possibilidades de exploração dos trabalhadores por parte dos latifundiários e dos capitalistas, de destruir o domínio do capital. O poder soviético esforçou-se para conseguir que os trabalhadores pudessem construir sua vida sem a propriedade privada das fábricas e das oficinas, sem aquela propriedade privada que, em toda parte do mundo, mesmo quando existe a plena liberdade política, mesmo nas repúblicas mais democráticas, reduziu de fato os operários à miséria e à escravidão do salário e a mulher a uma dupla escravidão.
Por isso, o poder soviético, como poder dos trabalhadores, realizou nos primeiros meses de sua existência, a reviravolta mais decisiva na legislação sobre a mulher. Na República soviética não ficou pedra sobre pedra das leis que colocavam a mulher num estado de submissão. Refiro-me, precisamente, às leis que, aproveitando-se do fato de que a mulher é mais débil, a colocavam numa situação de desigualdade, muitas vezes até mesmo humilhante; isto é, às leis que se referem ao divórcio e aos filhos naturais e àquelas sobre o direito da mulher a citar judicialmente o pai, para prover o sustento do filha.
É justamente nesse terreno que a legislação burguesa, até mesmo nos países mais avançados, deve-se dizê-lo, explora a fraqueza da mulher, privando-a de determinados direitos e humilhando-a, e é justamente nesse terreno que o poder soviético não deixou pedra sobre pedra das velhas leis injustas, intoleráveis para os representantes das massas trabalhadoras. E hoje podemos dizer, com legítimo orgulho e sem sombra de exagero, que não existe nenhum país no mundo, fora da Rússia soviética, no qual a mulher goze de completa igualdade de direitos e não se ache numa situação humilhante, que se faz sentir particularmente na vida cotidiana e familiar. Esse foi um de nossos primeiros objetivos, um dos mais importantes.
Quando vos sucede ter contacto com os partidos hostis aos
bolcheviques, quando vos caem nas mãos os jornais publicados em russo nas regiões ocupadas por Koltchak e por Denikin, quando falais com pessoas que compartilham o ponto de vista desses jornais, podeis verificar como acusam o poder soviético de não respeitar a democracia.
A nós, representantes do poder soviético, bolcheviques, comunistas e forjadores do poder soviético, reprova-se constantemente por não havermos respeitado a democracia e, como prova, invoca-se o fato de o poder soviético haver dissolvido a Constituinte. A tal acusação respondemos habitualmente: essa democracia e essa Constituinte, lançada quando existia a propriedade privada da terra, quando os homens não eram ainda iguais, quando quem possuía um capital pessoal era dono e aqueles que trabalhavam sob sua dependência eram seus escravos assalariados, para nós não valem nada. Esse tipo de democracia encobria a escravidão, até mesmo nos estados mais avançados. Nós, socialistas, pomos adeptos da democracia apenas na medida em que esta alivia a situação dos trabalhadores e dos oprimidos. O socialismo propõe-se a tarefa de sustentar em todo o mundo a luta contra toda forma de exploração do homem pelo homem. A democracia a serviço dos explorados, daqueles que estão numa situação de desigualdade jurídica: eis o que verdadeiramente importa para nós. Que quem não trabalha seja privado do direito de voto, eis a verdadeira igualdade entre os homens. Não deve haver pessoas que não trabalhem. Para responder àquela acusação é preciso saber como se concretiza a democracia neste ou naquele Estado. Veremos então que em todas as repúblicas democráticas se proclama a igualdade, mas nas leis civis e nas leis que regulam a situação da mulher, sua posição na família, o divórcio, vemos a cada passo o estado de desigualdade e de inferioridade da mulher e dizemos que se trata exatamente de uma violação da democracia no que se refere aos oprimidos. Não deixando, subsistir em suas leis o menor sinal de desigualdade da mulher, o poder soviético realizou a democracia de uma forma mais elevada que em qualquer outro país, inclusive os mais avançados. Repito: nenhum Estado, nenhuma legislação democrática fez pela mulher nem a metade daquilo que fez o poder soviético nós primeiros meses de sua existência.
É claro, que não bastam leis e não nos contentamos absolutamente com as realizações de caráter legislativo, às quais já nos referimos, mas realizamos tudo que se exigia para colocar a mulher em pé de igualdade e podemos com razão estar orgulhosos.
Hoje, na Rússia soviética, a situação da mulher pode considerar-se ideal, se comparada com a existente nos Estados mais avançados. Afirmamos, no entanto, que isso é apenas o começo.
A situação da mulher, no que se refere aos trabalhas domésticos, ainda continua penosa. Para que a mulher seja completamente emancipada e efetivamente igual ao homem, é preciso que os trabalhos domésticos sejam coisa pública e que a mulher participe do trabalho produtivo geral. Então ela terá uma posição igual à do homem.
Não se trata, por certo, de abolir para a mulher todas as diferenças concernentes ao rendimento do trabalho, à quantidade e condições de trabalho, mas de pôr fim à opressão da mulher que decorre da diferente situação econômica dos dois sexos. Todas vós sabeis que, mesmo quando existe plena igualdade de direitos, essa opressão da mulher continua de fato a subsistir, porque sobre ela cai todo o peso do trabalho doméstico que, na maior parte dos cases, é o trabalho menos produtivo, mais pesado, mais bárbaro. É um trabalho extremamente mesquinho que não pode contribuir, no mínimo que seja, para o desenvolvimento da mulher.
Buscando o ideal socialista, queremos lutar pela plena realização do socialismo e aqui um vasto campo de trabalho se abre diante das mulheres. Hoje, nos preparamos seriamente para limpar o terreno no qual será construído o socialismo, mas a construção do socialismo só começará quando, depois de haver realizado a igualdade completa da mulher, juntamente com ela, libertada de uma atividade mesquinha, degradante, improdutiva, nas lançarmos ao novo trabalho. Será um trabalho de longos anos que não dará resultados tão rápidos, nem produzirá efeitos tão brilhantes.
Criaremos instituições modelos, refeitórios, creches, que libertarão as mulheres do trabalho doméstico. E a tarefa de organizar todas essas instituições caberá antes de tudo às mulheres. É preciso dizer que existem hoje na Rússia pouquíssimas instituições aptas a ajudar as mulheres a saírem da situação de escravas domésticas. Seu número é ínfimo e as condições atuais da República dos Sovietes, tanto no terreno militar, come no do abastecimento — dos quais já vos falaram detalhadamente os camaradas — dificultam esse trabalho. Todavia, deve-se dizê-lo, em qualquer parte que se apresente a mínima possibilidade, surgem as instituições que libertarão as mulheres da condição de escravas domésticas. Como dizemos que a emancipação dos operários deve ser obra dos próprios operários, assim também afirmamos que a emancipação das operárias deve ser obra das próprias operárias. As próprias operárias devem ocupar-se do desenvolvimento das instituições desse tipo; e essa atividade das mulheres conduzirá a uma transformação completa de sua antiga situação na sociedade capitalista.
Na velha sociedade capitalista, para ocupar-se de política exigia-se uma preparação específica; por isso a participação das mulheres na política era insignificante, até mesmo nos países capitalistas mais avançados e mais livres. Nossa tarefa é tornar a política acessível a qualquer trabalhadora. Desde o momento em que a propriedade privada da terra e das fábricas é abolida e o poder dos latifundiários e dos capitalistas derrubado, as tarefas política das massas trabalhadoras e das mulheres trabalhadoras se tornam simples, claras e inteiramente acessíveis a todos. Na sociedade capitalista, a mulher é privada dos direitos políticos a tal ponto que sua participação na política é quase nula em relação à do homem. Para modificar essa situação, é preciso instaurar o poder dos trabalhadores e então as principais tarefas políticas englobarão tudo que interessa diretamente à sorte dos próprios trabalhadores.
Para isso se torna indispensável a participação das trabalhadoras, não somente daquelas que são membros do Partido e conscientes, mas também das mulheres sem partido e menos conscientes. Para isso, o poder soviético abre para as mulheres um vasto campo de atividades.
Tem sido muito difícil lutar contra as forças inimigas que atacam a Rússia soviética. Tem sido difícil combater militarmente as forças que atacam o poder dos trabalhadores recorrendo à guerra e combater no terreno da produção contra os especuladores, porque não temes número suficiente de pessoas, de trabalhadores, que nos tenham vindo ajudar com todas as suas energias. E não existe nada de mais precioso para o poder soviético que a ajuda da grande massa das trabalhadoras sem partido. Que elas o saibam: se na velha sociedade burguesa a atividade política exigia talvez uma complexa preparação específica, que não estava ao alcance da mulher, na Rússia soviética a atividade política, uma vez que consiste principalmente em lutar contra os latifundiários e os capitalistas, em lutar por abolir a exploração, é acessível às operárias, que podem colaborar com os homens, utilizando sua própria capacidade organizadora..
Não necessitamos, porém, apenas de um trabalho de organização que interesse a milhões de pessoas. Necessitamos também de um trabalho de organização em escala mais reduzida, que permita às mulheres participar dele. A mulher pode trabalhar mesmo no terreno militar, quando se trata de ajudar o exército, de realizar em suas fileiras um trabalho de agitação. A mulher deve contribuir ativamente para que o Exército Vermelho se sinta cercado de nossa atenção, de nossos cuidados. Pode trabalhar também no abastecimento, na distribuição dos produtos, pela melhoria da alimentação das massas, para desenvolver os restaurantes que se estão criando, em grande número, em Petrogrado.
Eis aí os campos em que a atividade da operária aquire uma real importância organizadora. A participação das mulheres é além disso indispensável para organizar e controlar as grandes fazendas agrícolas experimentais, para garantir que estas iniciativas não sejam abandonadas a si mesmas. Sem o concurso de grande número de trabalhadoras uma obra desse tipo é irrealizável. A operária pode perfeitamente realizar esta tarefa, controlando a distribuição dos produtos, cuidando de que eles possam mais facilmente chegar à população. É uma tarefa que não é superior às forças da operária sem partido e, aliás, sua solução contribuirá mais que qualquer outra coisa para a consolidação da sociedade socialista.
Abolindo a propriedade privada da terra e, quase completamente, das fábricas e das oficinas, o poder soviético busca fazer que dessa edificação econômica participem todos os trabalhadores, não apenas os membros do Partido, mas também os sem-partido, não somente os homens, mas também as mulheres. Essa obra empreendida pelo poder soviético só progredirá com a condição de que em toda a Rússia não sejam centenas, mas milhões e milhões de mulheres que lhe dêem apoio. Então, estejamos certos, a construção socialista lançará raízes profundas. Então, os trabalhadores demonstrarão que podem viver e governar sem latifundiários e sem capitalistas. Então, a construção socialista terá na Rússia uma base tão sólida que nenhum inimigo interior ou exterior será temido pelo poder soviético.

sábado, 29 de novembro de 2008

A Contribuição da Mulher na Construção do Socialismo

V. I. Lênin
28 de Julho de 1919
Tomemos a situação da mulher. Nenhum partido democrático do mundo, em nenhuma das repúblicas burguesas mais progressistas, realizou a esse respeito em dezenas de anos nem mesmo a centésima parte daquilo que nós fizemos apenas no primeiro ano de nosso poder. Não deixamos literalmente pedra sobre pedra de todas as abjetas leis sobre as limitações dos direitos da mulher, sobre as restrições do divórcio, sobre as odiosas formalidades às quais estava vinculado, sobre a possibilidade de não reconhecer os filhes naturais, sobre investigação de paternidade etc., leis cujas sobrevivências, para vergonha da burguesia e do capitalismo, são muito numerosas em todas os países civilizados. Temes mil vezes o direito de estar orgulhosos daquilo que fizemos nesse terreno. Mas quanto mais limparmos o terreno do entulho das velhas leis e instituições burguesas, melhor vemos que com isso apenas limpamos o terreno para construir e não empreendemos ainda a própria construção.
A mulher, não obstante todas as leis libertadoras, continua uma escrava doméstica, porque é oprimida, sufocada, embrutecida, humilhada pela mesquinha economia doméstica, que a prende à cozinha, aos filhos e lhe consome as forças num trabalho bestialmente improdutivo, mesquinho, enervante, que embrutece e oprime. A verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começará onde e quando comece a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado), contra a pequena economia doméstica ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa economia na grande economia socialista.
Ocupamo-nos bastante, na prática, dessa questão que, teoricamente, é clara para todo comunista? Naturalmente, não. Temos suficiente cuidado com os germes do comunismo que já existem nesse terreno? Ainda uma vez não, e não! Os restaurantes populares, as creches e jardins de infância: eis os exemplos de tais germes, os meios simples, comuns, que nada têm de pomposo, de grandiloqüente, de solene, mas que são realmente capazes de emancipar a mulher, que são realmente capazes de diminuir e eliminar — dada a função que tem a mulher na produção e na vida social — a sua desigualdade em relação ao homem. Esses meios não são novos: foram criados (como em geral todas as premissas materiais do socialismo), pelo grande capitalismo; no capitalismo, porém, em primeiro lugar constituíam uma raridade e, em segundo lugar — e isso é particularmente importante — eram ou empresas comerciais, com todos os seus piores lados: especulações, corrida ao lucro, fraude, falsificações, ou «acrobacias da filantropia burguesa», que eram por justa razão odiadas e desprezadas pelos melhores operários.
Não há dúvida de que nós possuímos um número consideravelmente maior de tais instituições e que elas começam a mudar de caráter. Não há dúvida de que entre as operárias e as camponesas existem pessoas dotadas de capacidade organizadora em número muitas vezes maior do que supomos, pessoas que possuem a capacidade de organizar uma obra pratica, com a participação de grande número de trabalhadoras e de número ainda maior de consumidores e isso sem abundância de frases, sem barafunda, discussões, tagarelice sobre planos, sistemas etc., que são a eterna «doença» de um número infinito de «intelectuais», tão cheios de si e dos comunistas «recém-saídos da casca». Mas, infelizmente, não cuidamos, como seria preciso, desses germes da nova sociedade.
Observai a burguesia. Como sabe fazer magnificamente a publicidade daquilo que lhe é conveniente! Como as empresas, «exemplares» aos olhos dos capitalistas, são exaltadas em milhões de exemplares de seus jornais! Como se faz das instituições «modelo» um objeto de orgulho nacional! A nossa imprensa não se preocupa absolutamente, ou quase nada, em descrever os melhores restaurantes ou as melhores creches, para conseguir, mediante insistência diária, que algumas delas se tornem exemplares; de torná-las conhecidas; de descrever detalhadamente a economia de trabalho humano, a comodidade para os consumidores, a poupança de produtos, a libertação da mulher da escravidão doméstica, o melhoramento das condições sanitárias que se obtêm com um trabalho comunista exemplar, que se podem obter, que se podem estender a toda a sociedade, a todos os trabalhadores.
Produção modelo, sábados comunistas modelo(1*), cuidado e consciência exemplares na colheita e na distribuição de cada pud(2*) de trigo, restaurantes modelo, limpeza exemplar nesta ou naquela casa operária, nisto ou naquilo isoladamente, tudo isso deve ser objeto de atenção e de cuidado dez vezes maiores, tanto por parte de nossa imprensa como de toda organização operária e camponesa. Todas essas coisas são germes do comunismo e o cuidado com tais germes é um dever comum a todos nós; e o dever mais importante.

O Estado

V. I. Lenine
11 de Julho de 1919
Camaradas, o tema da charla de hoje, consoante com o plano traçado por vocês que me foi comunicado, é o Estado. Desconheço até que ponto é que vocês estám ao tanto deste tema. Se nom me engano, os seus cursos acabam de principiar, e pola primeira vez abordarám sistematicamente este tema. Se assim for, pode muito bem acontecer que na primeira conferência sobre este tema tam difícil eu nom consiga que a minha exposiçom seja suficientemente clara e compreensível para muitos dos meus ouvintes. Em tal caso, rogo-lhes que nom se preocupem, porque o problema do Estado é um dos mais complicados e difíceis, porventura aquele em que mais confusom semeárom os eruditos, escritores e filósofos burgueses. Nom cabe esperar, portanto, que se poda chegar a umha profunda compreensom do tema com umha breve charla, numha só sessom. Após a primeira charla sobre este tema, deverám tomar nota dos trechos que nom tenham percebido ou que nom lhes resultarem claros, para voltarmos sobre eles duas, três e quatro vezes, a fim de mais tarde poder ser completado e aclarado o que nom for percebido, quer mediante a leitura, quer mediante diversas charlas e conferências. Espero que poderemos voltar a reunir-nos e que havemos poder daquela trocar opinions sobre todos os pontos complementares e ver o que é que ficou mais obscuro. Espero aliás, que para além das charlas e conferências, dedicarám algum tempo a ler, polo menos, algumhas das obras mais importantes de Marx e Engels. Nom há qualquer dúvida que estas obras, as mais importantes, se acharám na listagem de livros recomendados e nos manuais que estám disponíveis na biblioteca de vocês para os estudantes, da escola do Soviet e do Partido; e embora, mais umha vez, alguns de vocês se sintam no começo, desanimados pola dificuldade da exposiçom, torno a advertir-lhes que nom devem preocupar-se com isso; o que nom resulta claro à primeira leitura, tornará claro na segunda leitura, ou quando logo a seguir foquem o problema de outro ángulo um bocado diferente. Porque, repito mais umha vez, o problema é tam complexo e tem sido tam ensarilhado polos eruditos e escritores burgueses, que quem desejar estudá-lo a sério e chegar a dominá-lo por conta própria, deve abordá-lo várias vezes, voltar sobre ele umha e outra vez e considerá-lo de vários ángulos, para poder chegar a umha compreensom clara e definida dele. Porque é um problema fundamental, tam basilar em toda política e porque, nom apenas em tempos tam turbulentos e revolucionários como os que vivemos, mas inclusivamente nos mais pacíficos, toparám com ele todos os dias em qualquer jornal, a respeito de qualquer assunto económico ou político, será tanto mais fácil voltar sobre ele. Todos os dias, por um motivo ou outro, tornarám vocês à pergunta: o quê é o estado, qual a sua natureza, a sua significaçom e qual a atitude do nosso partido, o partido que luita pola derrubada do capitalismo, o partido comunista, qual é a sua atitude no que di respeito ao Estado? E o mais importante é que, como resultado das leituras que realizem, como resultado das charlas e conferências que escuitem sobre o Estado, adquirirám a capacidade de focar este problema por si próprios, já que o defrontarám com os mais diversos motivos, em relaçom com as questons triviais, nos contextos mais inesperados, e em discussons e debates com adversários. E só quando aprenderem a se orientar por si próprios neste problema é que poderám considerar-se firmes nas suas convicçons e capazes para as defenderem com sucesso contra qualquer e em qualquer momento.
Depois destas breves consideraçons, passarei a tratar o problema em si; o quê é o Estado, como surgiu e, nomeadamente, qual deve ser a atitude no que atinge ao Estado desde o partido da classe operária, que luita polo total derrocamento do capitalismo, o partido dos comunistas.
Já tenho dito que dificilmente se encontrará outro problema em que deliberada e inconscientemente, tenham semeado tanta confusom os representantes da ciência, a filosofia, a jurisprudência, a economia política e o jornalismo burgueses como no problema do Estado. Ainda hoje é confundido muito amiúde com problemas religiosos; nom só polos representantes de doutrinas religiosas (é completamente natural esperá-lo entre eles), mas mesmo pessoas que se consideram livres de preconceitos religiosos confundem muito amiúde a questom específica do Estado com problemas religiosos e tentam elaborar umha doutrina –nom raro complexa, com umha focagem e umha argumentaçom ideológicos e filosóficos— que defende que o Estado é qualquer cousa divina, sobrenatural, certa força, em virtude da qual tem vivido a humanidade, que confere, ou pode conferir aos homens, ou que contém em si qualquer cousa que nom é própria do homem, mas dada de fora: umha força de origem divina. E cumpre dizer que esta doutrina está tam estreitamente ligada aos interesses das classes exploradoras –dos terratenentes e os capitalistas—, serve tam bem aos seus interesses, impregnou tam fundamente todos os costumes, as conceiçons, a ciência dos senhores representantes da burguesia, que toparám vocês vestígios dela a cada passo, mesmo na conceiçom do Estado que tenhem os mencheviques e eseristas, quem rejeitam a ideia de que se acham sob o influxo de preconceitos religiosos e estám convencidos de poderem considerar o Estado com serenidade. Este problema tem sido tam ensarilhado e complicado porque atinge mais do que outro qualquer (cedendo lugar nisto só aos fundamentos da ciência económica) os interesses das classes dominantes. A teoria do Estado serve para justificar os privilégios sociais, a existência da exploraçom, a existência do capitalismo, razom pola qual seria o maior dos erros esperar imparcialidade neste problema, abordá-lo na crença de que quem julgam serem cientistas podam brindar a vocês umha conceiçom puramente científica do assunto. Quando se tenham familiarizado com o problema do Estado, com a doutrina do Estado e com a teoria do Estado, e o tenham aprofundado suficientemente, descobrirám sempre a luita entre classes diferentes, umha luita que se reflecte ou se exprime num conflito entre conceiçons sobre o Estado na apreciaçom do papel e da significaçom do Estado.
Para abordarmos este problema do jeito mais científico, cumpre dar, polo menos, umha rápida olhadela à história do Estado, ao seu surgimento e evoluçom. Com certeza, quando se trata de um problema de ciência social, e o mais necessário para adquirir realmente o hábito de focar este problema em forma correcta, sem perder-nos num cúmulo de detalhes ou na imensa variedade de opinions contraditórias; o mais importante para abordar o problema cientificamente, é nom esquecer o nexo histórico fundamental, analisar cada problema do ponto de vista de como é que surgiu na história o fenómeno dado e quais fôrom as principais etapas do seu desenvolvimento e, do ponto de vista do seu desenvolvimento, examinar em que se tem tornado hoje.
Espero que ao estudarmos este problema do Estado, se ham de familiarizar com a obra de Engels A origem da família, a propriedade privada e o Estado. Trata-se de umha das obras fundamentais do socialismo moderno, cada umha de cujas frases pode aceitar-se com plena confiança, na segurança de que nom foi escrita à toa, senom que se baseia numha abundante documentaçom histórica e política. Sem dúvida, nom todas as partes desta obra estám expostas em forma igualmente acessível e compreensível; algumhas delas suponhem um leitor que já possui uns conhecimentos de história e de economia. Mas volto a repetir que nom devem preocupar-se com que ao lerem essa obra nom a entendam imediatamente. Isto acontece a quase todo o mundo. Mas relendo-a mais tarde, quando estiverem interessados no problema, conseguirám percebê-la na sua maior parte, se nom na sua totalidade. Cito este livro de Engels porque nele se fai umha focagem correcta do problema no senso mencionado. Começa com um bosquejo histórico das origens do Estado.
Para tratar devidamente este problema, o mesmo que outro qualquer – por exemplo o das origens do capitalismo, a exploraçom do homem polo homem, o do socialismo, como surgiu o socialismo, quê condiçons o engendrárom—, qualquer destes problemas só pode ser focado com segurança e confiança se se dá umha olhadela à história do seu desenvolvimento em conjunto. Relativamente a este problema cumpre ter presente , antes de mais, que nem sempre existiu o Estado. Houvo um tempo em que nom havia Estado. Este ocorre no lugar e no momento em que surge a divisom da sociedade em classes, quando ocorrem os exploradores e os explorados.
Antes de surgir a primeira forma de exploraçom do homem polo homem, a primeira foram da divisom em classes – proprietários de escravos e escravos—, existia a família patriarcal ou, como por vezes é chamada, a família do clam (clam: gens; naquela altura viviam juntas as pessoas de umha mesma linhagem ou origem). Na vida de muitos povos primitivos subsistem pegadas muito definidas de aqueles tempos primitivos, e se consultar qualquer obra sobre a cultura primitiva, toparám-se descriçons, indicaçons e reminiscências mais ou menos precisas do facto de que houvo umha época mais ou menos similar a um comunismo primitivo, em que ainda nom existia a divisom da sociedade em escravistas e escravos. Nessa altura nom havia Estado, nom havia aparelho especial nengum para o emprego sistemático da força e o submetimento do povo pola força. Esse aparelho é o que se chama Estado.
Na sociedade primitiva, quando a gente vivia em pequenos grupos familiares e ainda se achava nas etapas mais baixas do desenvolvimento, em condiçons próximas do selvagismo –época separada por vários milhares de anos da moderna sociedade humana civilizada—, nom se observam ainda indícios da existência do Estado. Achamos o predomínio do costume, a autoridade, o respeito, o poder de que gozavam os anciaos do clam; achamos que por vezes este poder era reconhecido às mulheres –a posiçom das mulheres, daquela, nom tinha parecido com a de opressom e falta de direitos das mulheres de hoje—, mas em nengumha parte achamos umha categoria especial de indivíduos diferenciados que governem os outros e que, com o fim de governarem, disponham sistemática e permanentemente de certo aparelho de coerçom, de um aparelho de violência, tal como o que representam actualmente, como todos sabem, os grupos especiais de homens armados, os cárceres e demais meios para submeter pola força a vontade dos outros, todo o que constitui a essência do Estado.
Se deixarmos de parte as chamadas doutrinas religiosas, as subtilezas, os argumentos filosóficos e as diversas opinions erigidas polos eruditos burgueses, e procurarmos atingir a verdadeira essência do assunto, veremos que na realidade o Estado é um aparelho de governo, separado da sociedade humana. Quando ocorre um grupo de especial de homens desta classe, dedicados em exclusiva a governarem e que para governarem precisam de um aparelho especial de coerçom para submeterem a vontade de outros pola força –cárceres, grupos especiais de homens, exércitos, etc.–, é quando ocorre o Estado.
Mas houvo um tempo em que nom existia o Estado, em que os vínculos gerais, a sociedade mesma, a disciplina e organizaçom do trabalho se mantinham pola força do costume e a tradiçom, pola autoridade e respeito de que gozavam os anciaos do clam ou as mulheres –que naquela altura nom só gozavam de umha posiçom social igual à dos homens, senom que mesmo, nom raro, gozavam até de umha posiçom social superior—, e em que nom havia umha categoria especial de pessoas que se especializassem em governar. A história demonstra que o Estado, como aparelho especial para a coerçom dos homens, surge apenas onde e quando ocorre a divisom da sociedade em classes, quer dizer, a divisom em grupos de pessoas, algumhas das quais se apropriam permanentemente do trabalho alheio, onde uns exploram os outros.
E esta divisom da sociedade em classes, através da história, é o que devemos ter sempre presente com toda claridade, como um facto fundamental. O desenvolvimento de todas as sociedades humanas ao longo de milhares de anos, em todos o países sem excepçom, revela-nos umha sujeiçom geral a leis, umha regularidade e conseqüência; de jeito que temos, primeiro, umha sociedade sem classes, a sociedade originária, patriarcal, primitiva, em que nom existiam aristocratas; a seguir umha sociedade baseada na escravatura, umha sociedade escravista. Toda a Europa moderna e civilizada passou por essa etapa: a escravatura reinou soberana há dous mil anos. Por essa etapa passou também a grande maioria dos povos de outros lugares do mundo. Ainda hoje se conservam rastos da escravatura entra os povos menos desenvolvidos; em África, por exemplo, persiste na ainda na actualidade a instituiçom da escravatura. A divisom em proprietários de escravos e escravos foi a primeira divisom importante. O primeiro grupo nom só possuía todos os meios de produçom –a terra e as ferramentas, por muito primitivas que fossem na altura—, senom que tinham também os homens. Este grupo era conhecido como o dos proprietários de escravos, enquanto os que trabalhavam e subministravam o trabalho a outros eram conhecidos como escravos.
Esta forma foi seguida na história por outra: o feudalismo. Na grande maioria dos países, a escravatura, no decurso do seu desenvolvimento, evoluiu para a servidume. A divisom fundamental da sociedade era: os terratenentes proprietários de servos, e os camponeses servos. Mudou a forma dos relacionamentos entre os homens. Os possuidores de escravos consideravam os escravos como a sua propriedade; a lei confirmava este conceito e considerava o escravo como um objecto que pertencia integralmente ao proprietário de escravos. No que ao camponês servo di respeito, subsistia a opressom de classe e a dependência, mas nom se julgava que os camponeses fossem um objecto de propriedade do terratenente proprietário de servos; este apenas tinha direito a apossar-se do seu trabalho, a obrigá-los a executarem certos serviços. Na prática, como todos vocês sabem, a servidume, nomeadamente na Rússia, onde subsistiu mais tempo e revestiu as formas mais brutais, nom se diferenciava em nada da escravatura. Mais tarde, com o desenvolvimento do comércio, o aparecimento do mercado mundial e o desenvolvimento da circulaçom monetária, dentro da sociedade feudal surgiu umha nova classe, a classe capitalista. Da mercadoria, a troca de mercadorias e o aparecimento do poder do dinheiro, surgiu o poder do capital. Durante o século XVIII, ou por melhor dizer, desde os fins do século XVIII e durante o século XIX, explodírom revoluçons em todo o mundo. O feudalismo foi abolido em todos os países da Europa Ocidental. Rússia foi o derradeiro país onde isto aconteceu. Em 1861, produziu-se também na Rússia umha mudança radical, como conseqüência disso, umha forma de sociedade foi substituída por outra: o feudalismo foi substituído polo capitalismo, sob o qual continuou a existir a divisom em classes, bem como diversas pegadas e sobrevivências do regime de servidume, mas fundamentalmente a divisom em classes assumiu umha forma diferente.
Os donos do capital, os donos da terra e os donos das fábricas constituíam e continuam a constituir, em todos os países capitalistas, umha insignificante minoria da populaçom, que governa totalmente o trabalho de todo o povo e, portanto, governa, oprime e explora toda a massa de trabalhadores, a maioria dos quais som proletários, trabalhadores assalariados, que ganham a vida no processo de produçom, só a vender a sua mao-de-obra, a sua força de trabalho. Com a passagem ao capitalismo, os camponeses, que foram divididos e oprimidos sob o feudalismo, tornárom-se, em parte (a maioria) em proletários, e em parte (a minoria) em camponeses ricos, quem por sua vez contratárom trabalhadores e constituírom a burguesia rural.
Este facto fundamental –a passagem da sociedade, das formas primitivas de escravatura ao feudalismo, e por último ao capitalismo— é o que devem vocês ter sempre presente, já que apenas lembrando este facto fundamental, enquadrando todas as doutrinas políticas neste quadro fundamental, estarám em condiçons de valorizar devidamente essas doutrinas e compreender o quê é que se proponhem. Pois cada um destes grandes períodos da história da humanidade –o escravista, o feudal e o capitalista— abrange dezenas e centenares de séculos, apresenta umha tal quantidade de formas políticas, umha tal variedade de doutrinas políticas, opinions e revoluçons, que só poderemos chegar a compreender esta enorme diversidade e esta imensa variedade –nomeadamente relativamente às doutrinas políticas, filosóficas e outras dos eruditos e políticos burgueses—, desde que soubermos ferrar firmemente, como a um fio orientador fundamental, esta divisom da sociedade em classes, essas mudanças das formas da dominaçom de classes, e se analisarmos, deste ponto de vista, todos os problemas sociais— económicos, políticos, espirituais, religiosos, etc.
Se vocês considerarem o Estado do ponto de vista desta divisom fundamental, verám que antes da divisom da sociedade em classes, como já tenho dito, nom existia qualquer Estado. Mas quando surge e se afiança esta divisom da sociedade em classes, quando surge a sociedade de classes, também surge e se afiança o Estado. A história da humanidade conhece dezenas e centos de países que tenhem passado ou estám a passar na actualidade pola escravatura, o feudalismo e o capitalismo. Em cada um deles, apesar das enormes mudanças históricas que tivérom lugar, apesar de todas as vicissitudes políticas e de todas as revoluçons relacionadas com este desenvolvimento da humanidade e com a transiçom da escravatura ao capitalismo, passando polo feudalismo, e até chegar à actual luita mundial contra o capitalismo, vocês perceberám sempre o surgimento do Estado. Este foi sempre determinado aparelho à margem da sociedade e consistente num grupo de pessoas dedicadas exclusiva ou quase exclusivamente ou principalmente a governar. Os homens dividem-se em governados e em especialistas em governar, que se colocam por cima da sociedade e som chamados governantes, representantes do Estado. Este aparelho, este grupo de pessoas que governam os mais, toma posse sempre de certos meios de coerçom, de violência física, que se exprima esta violência sobre os homens com a maça primitiva, que o faga em tipos mais aperfeiçoados de armas, na época da escravatura, ou nas armas de fogo inventadas na Idade Média ou, por último, nas armas modernas, que no século XX som verdadeiras maravilhas da técnica e se baseiam integralmente nos últimos logros da tecnologia moderna. Os métodos de violência mudárom, mas em toda a parte existiu um Estado, existiu em cada sociedade, um grupo de pessoas que governavam, mandavam, dominavam e que, para conservarem o seu poder, dispunham de um aparelho de coerçom física, de um aparelho de violência, com as armas que correspondiam ao nível técnico da dada época. E apenas examinando estes fenómenos gerais, perguntando-nos por quê é que nom existiu Estado nengum quando nom havia classes, quando nom havia exploradores e explorados, e por quê ocorreu quando ocorrêrom as classes; só assim é que acharemos umha resposta definida à pergunta de qual é que é a essência e a significaçom do Estado.
O Estado é umha máquina para manter a dominaçom de umha classe sobre outra. Quando nom existiam classes na sociedade, quando, antes da época da escravatura, os homens trabalhavam em condiçons primitivas de maior igualdade, em condiçons em que a produtividade do trabalho era ainda muito baixa e quando o homem primitivo quase nem podia conseguir os meios indispensáveis para a existência mais tosca e primitiva, entom nom surgiu, nem podia fazê-lo, um grupo especial de homens afastados especialmente para governarem e dominarem o resto da sociedade. Apenas quando apareceu a primeira forma da divisom da sociedade em classes, quando ocorreu a escravatura, quando umha classe determinada de homens, ao se concentrar nas formas mais rudimentares do trabalho agrícola, pudo produzir excedente, e quando este excedente nom resultou absolutamente necessário para a mísera existência da classe dos proprietários dos escravos, entom, para que esta pudesse afiançar-se cumpria que aparecesse um Estado.
E apareceu o Estado escravista, um aparelho que deu poder aos proprietários de escravos e lhes permitiu governar os escravos. A sociedade e o Estado eram na altura muito mais reduzidos do que na actualidade, possuíam meios de comunicaçom incomparavelmente mais rudimentares; nom existiam naquela altura os modernos meios de comunicaçom. As montanhas, os rios e os mares eram obstáculos incomparavelmente maiores do que hoje, e o Estado formou-se dentro dos limites geográficos muito mais estreitos. Um aparelho estatal tecnicamente fraco servia a um Estado confinado dentro de limites relativamente estreitos e com umha esfera de acçom limitada. Mas, de qualquer maneira, existia um aparelho que obrigava os escravos a permanecerem na escravatura, que mantinha umha parte da sociedade subjugada e oprimida pola outra. É impossível obrigar a maior parte da sociedade a trabalhar em forma sistemática para a outra parte da sociedade sem um aparelho permanente de coerçom. Enquanto nom existírom classes, nom houvo um aparelho desse tipo. Quando ocorrêrom as classes, sempre e em toda a parte, à medida que a divisom crescia e se consolidava, ocorria também umha instituiçom especial: o Estado. As formas de Estado eram muito variadas. Já durante o período da escravatura, achamos diversas formas de Estado nos países mais avançados, mais cultos e civilizados da época, por exemplo na antígua Grécia e na antiga Roma, que se baseavam integralmente na escravatura. Já tinha surgido naquela altura umha diferença entre monarquia e república, entre aristocracia e democracia. A monarquia é o poder de umha só pessoa, a república é a ausência de autoridades nom eleitas; a aristocracia é o poder de umha minoria relativamente pequena, a democracia o poder do povo (democracia em grego significa literalmente poder do povo). Todas estas diferenças surgírom na época da escravatura. Apesar destas diferenças, o Estado da época escravista era um Estado escravista, quer se tratasse de umha monarquia, quer de umha república, aristocrática ou democrática. Em todos os cursos de história da antigüidade, ao escuitarem a conferência sobre este tema, falarám-lhes da luita livrada entre os Estado monárquicos e os republicanos. Mas o facto fundamental é que os escravos nom eram considerados seres humanos; nom apenas nom eram considerados cidadaos, quanto que nem sequer eram considerados seres humanos. O direito romano considerava-os como bens. A lei sobre o homicídio, para nom mencionarmos outras leis de protecçom da pessoa, nom amparava os escravos. Defendia apenas os proprietários de escravos, os únicos que eram reconhecidos como cidadaos com plenos direitos. Tanta fazia que governasse umha monarquia ou umha república; tanto umha como outra eram umha república dos proprietários de escravos ou umha monarquia dos proprietários de escravos. Estes gozavam de todos os direitos, enquanto os escravos, perante a lei, eram bens; e contra o escravo nom apenas podia perpetra-se qualquer tipo de violência, mas inclusivamente matar um escravo nom era considerado delito. As repúblicas escravistas diferiam na sua organizaçom interna; havia repúblicas aristocráticas e repúblicas democráticas. Na república aristocrática participava nas eleiçons um reduzido número de privilegiados; na república democrática participavam todos, mas sempre todos os proprietários de escravos, todos salvo os escravos. Deve levar-se em conta este facto fundamental, já que deita mais luz do que qualquer outro sobre o problema do Estado, e apresenta a nu a natureza do Estado.
O Estado é umha máquina para que umha classe reprima outra, umha máquina para a sustentaçom a umha classe de outras classes, subordinadas. Esta máquina pode apresentar diversas formas. O Estado escravista podia ser umha monarquia, umha república aristocrática e mesmo umha república democrática. Na realidade, as formas de governo variavam extraordinariamente, mas a sua essência era sempre a mesma: os escravos nom gozavam de qualquer direito e continuavam a ser umha classe oprimida; nom eram considerados seres humanos. Achamos o mesmo no Estado feudal.
A mudança na forma de exploraçom transformou o Estado escravista em Estado feudal. Isto tivo umha enorme importáncia. Na sociedade escravista, o escravo nom gozava de qualquer direito e nom era considerado um ser humano; na sociedade feudal, o camponês achava-se sujeito à terra. O principal traço da servidume era que os camponeses (e naquela altura os camponeses constituíam a maioria, desde que a populaçom urbana era ainda muito pouco desenvolvida) eram considerados sujeitos à terra; daí é que deriva este conceito mesmo: a servidume. O camponês podia trabalhar certo número de dias para si próprio na parcela que lhe assinalava o senhor feudal; os restantes dias o camponês servo trabalhava para o seu senhor. Subsistia a essência da sociedade de classes: a sociedade baseava-se na exploraçom de classe. Apenas os proprietários da terra desfrutavam de plenos direitos; os camponeses nom tinham qualquer direito. Na prática a sua situaçom nom diferia muito da situaçom dos escravos no Estado escravista. No entanto, tinha-se aberto um caminho mais amplo para a sua emancipaçom, para a emancipaçom dos camponeses, já que o camponês servo nom era considerado propriedade directa do senhor feudal. Podia trabalhar umha parte do seu tempo na sua própria parcela; podia, por assim dizer, ser, até certo ponto, dono de si próprio; e ao alargarem-se as hipóteses de desenvolvimento da troca e dos relacionamentos comerciais, o sistema feudal foi-se desintegrando progressivamente e fôrom-se alargando progressivamente as possibilidades de emancipaçom da classe camponesa. A sociedade feudal foi sempre mais complexa do que a sociedade escravista. Havia um importante factor de desenvolvimento do comércio e a indústria, cousa que, mesmo nessa época, conduziu ao capitalismo. O feudalismo predominava na Idade Média. E também aqui diferiam as formas do Estado; também aqui achamos a monarquia e a república, embora se manifestasse esta última de maneira muito mais fraca. Mas sempre se considerava o senhor feudal como o único governante. Os camponeses servos careciam de quaisquer direitos políticos.
Nem sob a escravatura nem sob o feudalismo podia umha minoria de pessoas dominar a enorme maioria sem recorrer à coerçom. A história está cheia de constantes tentativas das classes oprimidas por se libertarem da opressom. A história da escravatura fala-nos de guerras de emancipaçom dos escravos que durárom décadas inteiras. O nome de "espartaquistas", entre parênteses, que tenhem adoptado agora os comunistas alemáns –o único partido alemám que realmente luita contra o jugo do capitalismo—, adoptárom-no devido a que Espartaco foi o herói mais destacado de umha das mais grandes sublevaçons de escravos que tivo lugar há por volta de dous mil anos. Durante vários anos, o Império romano, que semelhava omnipotente e que se apoiava por inteiro na escravatura, sofreu o choque e as sacudiduras de umha extensa revolta de escravos, armados e agrupados num vasto exército, sob a direcçom de Espartaco. Afinal fôrom derrotados, apresados e torturados polos proprietários de escravos. Guerras civis como estas surgem ao longo de toda a história da sociedade de classes. O que acabo de assinalar é um exemplo da mais importante destas guerras civis na época da escravatura. Do mesmo modo, toda a época do feudalismo acha-se semeada por constantes sublevaçons dos camponeses. Na Alemanha, por exemplo, na Idade Média, a luita entre as duas classes –terratenentes e servos— assumiu amplas proporçons e transformou-se numha guerra civil dos camponeses contra os terratenentes. Todos vocês conhecem exemplos semelhantes de constantes revoltas dos camponeses contra os terratenentes feudais na Rússia.
Para manterem a sua dominaçom e assegurar o seu poder, os senhores feudais necessitavam de um aparelho com o que pudessem subjugar umha enorme quantidade de pessoas e submetê-las a certas leis e normas; e todas essas leis, no fundamental, reduziam-se a umha só cousa; a manutençom do poder dos senhores feudais sobre os camponeses servos. Tal era o Estado feudal, que na Rússia, por exemplo, ou nos países asiáticos muito atrasados (nos quais ainda impera o feudalismo) diferia na sua forma: era umha república ou umha monarquia. Quando o Estado era umha monarquia, reconhecia-se o poder de um indivíduo; quando era umha república, num ou outro grau era reconhecida a participaçom de representantes eleitos da sociedade terratenente; isto acontecia na sociedade feudal. A sociedade feudal representava umha divisom em classes na qual a imensa maioria –os camponeses servos— estava totalmente submetida a umha insignificante minoria, aos terratenentes, donos da terra.
O desenvolvimento do comércio, o desenvolvimento do intercámbio de mercadorias, conduzírom à formaçom de umha nova classe, a dos capitalistas. O capital conformou-se como tal em fins da Idade Média, quando, depois da descoberta da América, o comércio mundial adquiriu um desenvolvimento enorme, quando aumento a quantidade de metais preciosos, quando a prata e o ouro se tornárom em meios de troco, quando a circulaçom monetária permitiu a certos indivíduos acumular enormes riquezas. A prata e o ouro fôrom reconhecidos como riqueza em todo o mundo. Declinou o poder económico da classe terratenente e cresceu o poder da nova classe, os representantes do capital. A sociedade reorganizou-se de modo tal, que todos os cidadaos semelhavam ser iguais, desapareceu a velha divisom em proprietários de escravos e escravos, e todos os indivíduos fôrom considerados iguais perante a lei, para além do capital que possuíssem –proprietários de terras ou pobres homens sem mais propriedade do que a sua força de trabalho, todos eram iguais perante a lei. A lei protege todos por igual; protege a propriedade dos que a tenhem, contra os ataques das massas que, ao nom possuírem qualquer propriedade, ao nom possuírem mais do que a sua força de trabalho, se vam tornando mais pobres e arruinando-se aos poucos até se converterem em proletários. Tal é a sociedade capitalista.
Nom podo demorar na sua análise pormenorizada. Já voltarám vocês a isso quando estudarem o programa do partido: terám daquela umha descriçom da sociedade capitalista. Esta sociedade foi avançando contra a servidume, contra o velho regime feudal, sob a consigna da liberdade. Mas era a liberdade para os proprietários. E quando se desintegrou o feudalismo, cousa que aconteceu em fins do século XVIII e começos do século XIX, --na Rússia aconteceu mais tarde do que noutros países, em 1861—, o Estado feudal foi deslocado polo Estado capitalista, que proclamava como consigna a liberdade para todo o povo, que afirma exprimir a vontade do povo todo e nega ser um Estado de classe. E é neste ponto que se iniciou umha luita entre os socialistas, que brigam pola liberdade de todo o povo, e o Estado capitalista, luita que conduziu hoje à criaçom da República Socialista Soviética e que se está a estender ao mundo inteiro.
Para compreendermos a luita principiada contra o capital mundial, para percebermos a essência do Estado capitalista, devemos lembrar que quando ascendeu o Estado capitalista contra o Estado feudal, entrou na luita sob a palavra de ordem da liberdade. A aboliçom do feudalismo significou a liberdade para os representantes do Estado capitalista e serviu aos seus fins, já que a servidume desabava e os camponeses tinham a possibilidade de possuir em plena propriedade a terra adquirida por eles mediante um resgate ou, em parte polo pagamento de um tributo; isto nom interessava ao Estado; protegia a propriedade sem importar-se com a sua origem, pois o Estado se baseava na propriedade privada. Em todos os Estados civilizados modernos, os camponeses tornárom em proprietários privados. Inclusivamente quando o terratenente cedia parte das suas terras aos camponeses, o Estado protegia a propriedade privada, ressarcindo o terratenente com umha indemnizaçom, permitindo-lhe obter dinheiro pola terra. O Estado, por assim dizer, declarava que ampararia totalmente a propriedade privada e lhe outorgava toda a classe de apoio e protecçom. O Estado reconhecia os direitos de propriedade de todo lojista, fabricante e industrial. E esta sociedade, baseada na propriedade privada, no poder do capital, na sujeiçom total dos operários despossuídos e as massas trabalhadoras dos camponeses, proclamava que o seu regime se baseava na liberdade. Ao luitar contra o feudalismo, proclamou a liberdade de propriedade e sentia-se especialmente orgulhosa de que o Estado tivesse deixado de ser, supostamente, um Estado de classe.
Porém, o Estado continuava a ser umha máquina que ajudava o capitalistas a manterem submetidos os camponeses pobres e a classe operária, embora na sua aparência exterior fosse livre. Proclamava o sufrágio universal e, por meio dos seu defensores, pregadores, eruditos e filósofos, que nom era um Estado de classe. Inclusivamente, agora, quando as repúblicas socialistas soviéticas tenhem começado a combater o Estado, acusam-nos de sermos violadores da liberdade e de erigirmos um Estado baseado na coerçom, na repressom de uns por outros, enquanto eles representam um Estado de todo o povo, um Estado democrático. E este problema, o problema do Estado, é agora, quando principiou a revoluçom socialista mundial e quando a revoluçom triunfa nalguns países, quando a luita contra o capital se tem agudizado em extremo, um problema que tem adquirido a maior importáncia e pode dizer-se que se tem tornado no problema mais candente, no foco de todos os problemas políticos e de todas as polémicas políticas do presente.
Qualquer que for o partido que tomarmos na Rússia ou em qualquer dos países mais civilizados, vemos que todas as polémicas, discrepáncias e opinions políticas giram agora à volta da conceiçom do Estado. É o Estado, num país capitalista, numha república democrática – nomeadamente em repúblicas como a Suíça ou Norte-América—, nas repúblicas democráticas mais livres, a expressom da vontade popular, a resultante da decisom geral do povo, a expressom da vontade nacional, etc., ou o Estado é umha máquina que permite aos capitalistas desses países conservarem o seu poder sobre a classe operária e os camponeses e camponesas? Eis o problema fundamental a cuja volta giram todas as polémicas políticas no mundo inteiro. O quê se di sobre o bolchevismo? A imprensa burguesa deita doestos sobre os bolcheviques. Nom acharám um só jornal que nom repita a acusaçom na moda de que os bolcheviques violam a soberania do povo. Se os nossos mencheviques e eseristas, na sua simpleza de espírito (e porventura nom simpleza, ou talvez simpleza da que di o provérbio que é pior do que a ruindade) julgam que inventárom e decobrírom a acusaçom de que os bolcheviques violárom a liberdade e a soberania do povo, enganam-se do jeito mais ridículo. Hoje, todos os jornais mais ricos dos países mais ricos, que gastam dezenas de milhons na sua difusom e disseminam mentiras burguesas e a política imperialista em dezenas de milhons de exemplares, todos esses jornais repetem esses argumentos e acusaçons fundamentais contra o bolchevismo, a saber: que a Norte-América, a Inglaterra e a Suíça som Estados avançados, baseados na soberania do povo, enquanto a república bolchevique é um Estado de bandidos em que nom se conhece a liberdade e que os bolcheviques som violadores da ideia da soberania do povo e mesmo chegárom ao extremo de dissolverem a Assembleia Constituinte. Estas terríveis acusaçons contra os bolcheviques repetem-se no mundo todo. Estas acusaçons conduzem-nos directamente à pergunta: o quê é o Estado? Para compreendermos estas acusaçons, para podermos estudá-las e adoptar a respeito delas umha atitude plenamente consciente, e nom examiná-las baseando-se em boatos, mas numha firme opiniom própria, devemos ter umha clara ideia do que é que é o Estado. Temos ante nós Estados capitalistas de todo o tipo e todas as teorias que na sua defesa se elaborárom antes da guerra. Para respondermos correctamente à pergunta, devemos examinar com umha focagem crítica todas estas teorias e concepçons.
Já lhes aconselhei que recorressem ao livro de Engels A origem da família, a propriedade privada e Estado. Nele di-se que todo Estado em que existe a propriedade privada da terra e os meios de produçom, em que domina o capital, por democrático que for, um Estado capitalista, umha máquina em maos dos capitalistas para o subjugamento da classe operária e dos camponeses pobres. E o sufrágio universal, a Assembleia Constituinte ou o Parlamento som meramente umha forma, umha espécie de obriga de pagamento, que nom muda a essência do assunto.
As formas de dominaçom do Estado podem variar: o capital manifesta o seu poder de um modo onde existe umha forma e doutro onde existe outra forma, mas o poder está sempre, essencialmente, em maos do capital, quer com a existência do voto restrito ou outros direitos, quer se trate de umha república democrática ou nom; na realidade, quanto mais democrática for, mais grosseira e cínica é a dominaçom do capitalismo. Umha das repúblicas mais democráticas do mundo som os Estados Unidos de Norte-América, e no entanto, em nengures (e quem tiver estado lá após 1905 provavelmente o saiba) é tam cru e abertamente corrompido como na Norte-América o poder do capital, o poder de umha presa de multimilionários sobre toda a sociedade. O capital, desde que existe, domina a sociedade inteira, e nengumha república democrática, nengum direito eleitoral pode mudar a essência do assunto.
A república democrática e o sufrágio universal representárom um enorme progresso comparado com o feudalismo: permitírom ao proletariado atingir a sua actual unidade e solidariedade e formar fileiras compactas e disciplinadas que dam umha luita sistemática contra o capital. Nom existiu nada sequer semelhante a isto entre os camponeses servos e nem que falar já entre os escravos. Os escravos, como sabemos, sublevárom-se, amotinárom-se e principiárom guerras civis, mas nom podiam chegar a criar umha maioria consciente e partidos que dirigissem a luita; nom podiam compreender com clareza quais eram os seus objectivos, e mesmo nos momentos mais revolucionários da história fôrom sempre peons em maos das classes dominantes. A república burguesa, o Parlamento, o sufrágio universal, isso tudo constitui um imenso progresso do ponto de vista do desenvolvimento mundial da sociedade. A humanidade avançou para o capitalismo e foi o capitalismo somente, o que, mercê da cultura urbana, permitiu à classe oprimida dos proletários adquirir consciência de si própria e criar o movimento operário mundial; os milhons de operários organizados em partidos no mundo inteiro em partidos socialistas que dirigem conscientemente a luita das massas. Sem parlamentarismo, sem um sistema eleitoral, teria sido impossível este desenvolvimento da classe operária. É por isso que todas estas cousas adquirírom umha importáncia tam grande aos olhos das grandes massas do povo. É por isso que semelha tam difícil umha mudança radical. Nom som apenas os hipócritas conscientes, os sábios e os curas quem sustenhem e defendem a mentira burguesa de que o Estado é livre e que tem por missom defender os interesses de todos; o mesmo fam muitíssimas pessoas atadas sinceramente aos velhos preconceitos e que nom dam entendido a transiçom da sociedade antiga, capitalista, ao socialismo. E nom apenas as pessoas que dependem directamente da burguesia, nom apenas quem vivem sob o jugo do capital ou subornados polo capital (há grande quantidade de cientistas, artistas, cregos, etc., de todo o tipo ao serviço do capital), mas inclusivamente pessoas simplesmente influídas polo preconceito da liberdade burguesa, mobilizárom-se contra o bolchevismo no mundo inteiro, porque quando foi fundada a República Soviética, rejeitou as mentiras burguesas e declarou abertamente: vocês dim que o seu Estado é livre, quando na realidade, enquanto existir a propriedade privada, o Estado de vocês, embora for umha república democrática, nom é mais do que umha máquina em maos dos capitalistas para reprimir os operários,e quanto mais livre o Estado for, com maior clareza isto se há de patentear. Exemplos disto apresentam-no-los a Suíça, na Europa, e os Estados Unidos, na América. Em parte nengumha domina o capital em forma tam cínica e implacável e em parte nengumha a sua dominaçom é tam ostensível como nestes países, apesar de se tratar de repúblicas democráticas, por muito belamente que as pintem e por muito que nelas se fale de democracia, do trabalho e de igualdade de todos os cidadaos. O facto é que na Suíça e na Norte-América domina o capital, e qualquer tentativa dos operários por atingir a menor melhoria efectiva da sua situaçom, provoca imediatamente a guerra civil. Nestes países há poucos soldados, um exército regulara pequeno –a Suíça conta com umha milícia e todos os cidadaos suíços tenhem um fusil na sua morada, enquanto nos Estados Unidos, até há bem pouco, nom existia um exército regular—, de modo que quando estala umha greve, a burguesia arma-se, contrata soldados e reprime a greve; em nengumha parte a repressom do movimento operário é tam cruel e feroz como na Suíça e nos Estados Unidos, e em nengumha parte se manifesta com tanta força como nestes países a influência do capital sobre o Parlamento. A força do capital é-o tudo, a Bolsa é tudo, enquanto o Parlamento e as eleiçons nom som mais do que bonecos, títeres... Mas os operários vam abrindo cada vez mais o olhos e a ideia do poder soviético vai estendendo-se mais e mais. Nomeadamente depois da sangrenta matança pola que acabamos de passar. A classe operária adverte cada vez mais a necessidade de luitar implacavelmente contra os capitalistas.
Qualquer que for a forma com que se encubra umha república, por democrática que for, se for umha república burguesa, se conservar a propriedade privada da terra, das fábricas, se o capital privado mantiver toda a sociedade na escravatura assalariada, quer dizer, se a república nom levar à prática o que se proclama no programa do nosso partido e na Constituiçom soviética, daquela esse Estado é umha máquina para que uns reprimam outros. E devemos pôr esta máquina em maos da classe que terá de derrocar o poder do capital. Devemos rechaçar todos os velhos preconceitos à volta de o Estado significar a igualdade universal; pois isto é umha fraude: enquanto existir exploraçom nom poderá existir igualdade. O terratenente nom pode ser igual ao operário nem o homem faminto igual ao saciado. A máquina, chamada Estado, e ante a que os homens se inclinavam com supersticiosa veneraçom, porque acreditavam no velho conto de que significa o Poder do povo todo, o proletariado rechaça e afirma: é umha mentira burguesa. Nós temos arrancado aos capitalistas esta máquina e temos tomado posse dela. Utilizaremos essa máquina, o garrote, para liquidar toda exploraçom; e quando toda hipótese de exploraçom tiver desaparecido do mundo, quando já nom houver proprietários de terras nem proprietários de fábricas, e quando nom existir já umha situaçom em que uns estám saciado enquanto outros padecem fame, só quando tiver desaparecido devez a hipótese disto, relegaremos esta máquina para o lixo. Entom nom existirá Estado nem exploraçom. Tal é o ponto de vista do nosso partido comunista. Espero que voltaremos a este tema em futuras conferências, voltaremos a ele umha e outra vez.

Notas
1. A Universidade Comunista I.M. Sverdlov fundou-se sobre a base de uns cursos de agitadores e instrutores, organizados em 1918, adjuntos ao Comité Executivo Central de toda a Rússia. Mais tarde, os cursos fôrom reorganizados em Escola de Trabalhos dos Soviets. Depois da resoluçom, adoptada polo VIII Congresso do PC(b) da Rússia, de organizar umha escola superior adjunta ao CC para preparar quadros do Partido, a Escola transformou-se em Escola Central de Trabalhos dos Soviets e do Partido; no segundo semestre de 1919 por decisom do Buró de Organizaçom do CC do PC(b) da Rússia, a Escola recebeu o nome de Universidade Comunista I.M.Sverdlov. Lenine deu nela duas conferências acerca do Estado. O texto da Segunda, pronunciada em 29 de Agosto de 1919, nom foi conservado.